UMA NOVA ABORDAGEM DO MODELO BRASILEIRO DE DISTRIBUIÇÃO
DE VAGAS LEGISLATIVASE DE SOBRAS ELEITORAIS
(Nota Técnica 1 – continua)
Maurício Costa Romão
1. O problema da divisão proporcional
Nos sistemas eleitorais proporcionais, a escolha de representantes para o Poder Legislativo é considerada na literatura especializada um problema matemático de “divisão proporcional” ou “partilha equilibrada”, que consiste em distribuir de forma proporcional e justa as vagas de deputados e vereadores no Parlamento. Ressalte-se que o problema da divisão proporcional se aplica não só às eleições legislativas, mas a qualquer partição proporcional que envolva distribuir objetos iguais e indivisíveis entre determinado número de participantes.
Em termos de eleições de deputados e vereadores, então, a questão matemática que tem de ser resolvida é como dividir as vagas ou cadeiras de um Parlamento entre os partidos concorrentes, de acordo com a proporção de votos por eles obtida. São vários os métodos empregados para resolver essa divisão. Os mais conhecidos são os de:
- Hamilton (Alexander Hamilton);
- Jefferson (Thomas Jefferson), conhecido na Europa como método D’Hondt;
- Adams (John Quincy Adams);
- Webster (Daniel Webster) e
- Huntington-Hill (Edward V. Huntington e Joseph A. Hill), método atualmente usado na distribuição de cadeiras para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América.
No Brasil, e na maioria das democracias ocidentais, o método utilizado é o de D’Hondt, às vezes chamado de método das maiores médias. A denominação advém do nome do seu idealizador, o jurista belga Victor D’Hondt.
Todos esses métodos necessitam de um ponto de partida, uma base, uma métrica, para proceder à transformação de votos em cadeiras parlamentares. Uma base mais ou menos intuitiva é a razão entre os votos totais da eleição e o número de cadeiras a preencher. Então, se V é o total de votos de uma eleição e C é o número de cadeiras do Legislativo, a razão V/C representaria o número de votos por cadeira, ou o “valor” de uma cadeira em termos de votos. Essa razão pode ser interpretada também como o número médio de eleitores representados por parlamentar, já que cada eleitor equivale a um voto.
A razão mencionada é conhecida em alguns países como Standard Divisor, em outros, como quota Hare:
QH = V / C
Em que QH refere-se à quota Hare. No Brasil, a quota Hare é denominada de quociente eleitoral, neste texto representado por QE. Se do total V de votos da eleição se subtraem os votos em branco (VB) e os votos nulos (VN), tem-se os votos válidos (VV) que, conforme determina a legislação eleitoral brasileira, são os votos com os quais trabalha o TSE para a totalização e apresentação final dos resultados das eleições. Então, o quociente eleitoral é dado por:
QE = VV / C
A razão intuitiva QH (ou seu equivalente brasileiro QE) pode, em princípio, ser a métrica ideal para distribuir proporcionalmente cadeiras entre partidos, de acordo com as respectivas votações, desde que os quocientes derivados da divisão dessas votações pela razão QH resultassem em números inteiros cuja soma fosse a quantidade de cadeiras a preencher. Por exemplo, imagine-se uma eleição em determinado município (circunscrição eleitoral) cuja Câmara Municipal tivesse 10 vagas (cadeiras) legislativas. Admita-se que os partidos concorrentes A, B e C obtiveram 9.000, 5.400 e 3.600 votos respectivamente.
A questão clássica com a qual se defrontam os sistemas proporcionais é, nesse exemplo, como repartir as 10 vagas de vereadores entre os partidos A, B e C em consonância com a proporção de votos por eles obtida? Nesse exercício muito simples percebe-se logo que o partido A, com 9.000 votos, teve metade dos votos totais do pleito (18.000), fazendo jus a 50% das vagas, isto é, a 5 vagas. B e C, por sua vez, ficaram com 30% e 20% dos votos totais, conquistando três e duas cadeiras respectivamente.
Outra maneira de visualizar o problema é verificar quanto “vale” uma cadeira, em termos de votos, e confrontar esse valor com os votos de cada partido, individualmente, para saber quantas vezes o valor de uma cadeira “cabe” dentro da votação dos partidos individualmente. No caso em apreço, esse valor, o número de votos por cadeira, é 1.800 votos, resultado da razão V/C (18.000 ÷ 10). O que se precisa saber, na verdade, é quantas vezes as votações individuais dos partidos superam esse valor.
Bem, se cada cadeira for equivalente a 1.800 votos, o partido A, que obteve 9.000 votos, terá direito a 5 vagas; elegendo 5 vereadores (9.000 ÷ 1.800 = 5), o partido B ficará com 3 vagas (5.400 ÷ 1.800 = 3) e, finalmente, o partido C elegerá 2 vereadores (3.600 ÷ 1.800 = 2), preenchendo-se, assim, todas as 10 cadeiras do Legislativo.
Note-se, nesse exemplo, que os votos atribuídos a cada partido são sempre múltiplos da quota Hare, de que resultam quocientes inteiros (5, 3 e 2). O problema com essa fórmula eleitoral é que, na prática, no mundo real das eleições, quase nunca a divisão dos votos dos partidos pela quota Hare resulta em números inteiros.[1] O normal mesmo é a ocorrência de números fracionários.
No exercício que se acaba de expor, basta mudar ligeiramente os votos dos partidos A, B e C para, por exemplo, 9.300, 5.300 e 3.400 respectivamente, mantendo-se o total de votos em 18.000, para se verificar que os quocientes serão todos fracionários: 5,17, correspondente aos votos de A divididos pela quota Hare; 2,94, o número associado ao partido B e 1,89, o do partido C.
Veja-se agora que a soma das partes inteiras desses quocientes (5 + 2 + 1) compreende um total de oito cadeiras, e não de dez, como no exercício original. Há falta de duas cadeiras devido a sobras de votos não considerados, cujo total é exatamente igual às duas cadeiras correspondentes (0,17 + 0,94 + 0,89 = 2).
Essas partes fracionárias são chamadas na literatura especializada de “restos” ou “sobras”, no sentido de que são sobras de votos não computados. Nas eleições parlamentares, sempre e invariavelmente ocorrem sobras. Como distribuir essas sobras, isto é, como alocar as cadeiras restantes entre os partidos concorrentes, constitui-se num dos grandes e debatidos problemas dos sistemas proporcionais.
[1] O “quase nunca” da frase deve-se a uma precaução matemática: podem acontecer casos excepcionais, e acontecem! O famoso exemplo da eleição de 2002 para deputado federal, em São Paulo, é o mais ilustrativo desse fenômeno. O quociente eleitoral daquele pleito, divulgado pelo TRE-SP após as votações, foi de 280.129 votos. O Prona obteve 1.680.774 votos válidos, resultando em um quociente exato de 6, quando se dividem os votos pelo quociente eleitoral. O partido conquistou, portanto, seis cadeiras.