ALGO MAIS: A eleição deste ano será bem diferente das anteriores, devido à pandemia. O que muda essencialmente?
MR: A característica principal desta eleição é que as campanhas dos candidatos vão acontecer com pouca presença física junto ao eleitorado. A campanha, digamos, analógica, passa a ser virtual e isso traz várias conseqüências:
A rua física se torna rua virtual, o comitê físico agora é remoto, os contatos pessoais de rua, próprios da tradicional campanha, passam a ser contatos de redes, e o bom cabo eleitoral agora é o que tem influência digital; os gastos de campanha com materiais físicos são destinados hoje aos meios digitais; a propaganda com panfletos, santinhos, etc., agora será divulgada com mensagens de vídeo e por aí vai. É uma mudança muito profunda em termos de eleição.
ALGO MAIS: Então, neste novo cenário as mídias sociais terão um papel importante na eleição, mas elas serão decisivas?
MR: As mídias sociais terão influência cada vez maior nas eleições, à medida que seu uso se vai alastrando. O Brasil é o quarto país mais conectado à Internet do mundo, tem cerca de 134 milhões de usuários, o que dá uma idéia de como essa ferramenta pode impactar nas eleições.
Mas há ressalvas a se fazer: (a) apenas um pouco mais de 60% da população brasileira têm acesso à Internet. A desigualdade social e econômica característica do país mostra também sua perversa face na distribuição de acesso às redes digitais. As classes D e E, por exemplo, quando se tornam usuárias de Internet o fazem com pacotes de dados muito limitados. As mídias sociais são segmentadas por essência;
(b) o óbvio precisa ser dito: o alcance das mídias sociais depende do seu uso profissional pelo candidato. Não adianta apenas divulgar os eventos da campanha, o dia-a-dia do candidato ou, simplesmente, disparar mensagens de apelo, genéricas, retóricas, pelo Tweeter, Facebook, Instagram, WhatsApp, etc., na tentativa de apreender a atenção do internauta eleitor e eventualmente conquistar seu voto. É desperdício de tempo e mau uso do instrumento. As mídias sociais exigem consonância cognitiva entre o emissor e o receptor das mensagens. Então, além da indispensável criatividade, os candidatos têm que ter postura ativa, interagindo com os eleitores, mostrando suas propostas e soluções para os problemas da comunidade;
(c) mesmo nesta era digital a TV aberta continuará importante, principalmente agora com o afastamento social causado pela pandemia. A TV é veículo de massa. Alcança milhares e milhares de eleitores, incluindo os que se encontram nos mais distantes e inacessíveis rincões. As inserções, todavia, são muito mais valorizadas pelas campanhas eleitorais do que o horário fixo da propaganda eleitoral, naquele formato antiquado, repetitivo. Nas inserções, a comunicação ao eleitor se faz de surpresa, de repente, imiscuindo-se momentaneamente pela programação que o eleitor está vendo ou ouvindo.
Enfim, as redes sociais serão mais relevantes do que foram no passado e, dependendo do candidato, se forem usadas profissionalmente e com competência, junto com o rádio e a TV, poderão ser decisivas.
ALGO MAIS: Neste contexto digital, há um firme combate às fake news por parte do STF e de iniciativas como a do Sleeping Giants, que ataca o financiamento de veículos que disseminam notícias falsas. O senhor acredita que as fake news serão utilizadas com a mesma intensidade observada na campanha anterior no Brasil?
MR: O problema das fake news é um problema mundial. Em todos os lugares estão tentando achar uma fórmula de coibi-las. Não é tarefa trivial, como estamos vendo. O intento é absolutamente necessário e urgente, mas sempre esbarra na questão de controle da mídia, individualidade, liberdade de expressão, etc. Na eleição deste ano acho que ainda vai dar muito que falar, mas não creio que influenciará resultados, até porque se trata de um jogo de soma zero: os concorrentes praticam o mesmo expediente, igualando as forças. Em síntese, com todos os lados usando massivamente as tecnologias digitais, fake news não decidem eleições para um deles.
Por exemplo, qual foi o impacto das fake news na eleição passada para presidente, já que você mencionou? Há uma narrativa forte do PT de que o partido perdeu a eleição de 2018 por conta das fake news bolsonaristas.
Harari, no seu livro sobre o século 21, diz que “os humanos pensam em forma de narrativas, e não de fatos, números ou equações, e, quanto mais simples a narrativa, melhor”. É disso que o PT se aproveita e é muito competente nesse mister: sempre cria narrativas simples e eficazes. Neste caso da derrota de 2018, o partido, para se justificar perante sua militância e adeptos, dissemina uma fake news travestida de narrativa, bem simples, como se vê. Mas exagerou na dose, foi de simples a simplória: como uma eleição que teve uma diferença de 18 milhões de votos a favor de Bolsonaro contra Haddad no primeiro turno e mais de 10 milhões no segundo pode ter sido decidida por causa das fake news? É uma narrativa que agride os fatos.
ALGO MAIS: O aumento da popularidade do presidente Bolsonaro no Nordeste, provocado em grande parte pela distribuição do auxílio emergencial, pode ter repercussão na eleição em Pernambuco?
MR: O auxílio emergencial fornecido pelo governo federal para enfrentamento da crise do coronavírus beneficia 66 milhões de brasileiros (e é no Nordeste que fica o maior contingente de beneficiários) e coincidiu com melhoria recente na avaliação do governo Bolsonaro detectada por vários institutos de pesquisa.
Como tal avaliação vinha em vertiginosa trajetória de baixa, face ao descontentamento de grande parte da população com a escalada autoritária e antidemocrática do presidente, a par da gestão temerária da crise sanitária e de suas freqüentes declarações belicosas, essa inversão de tendência passou a ser tributada ao advento do auxílio. Não há dúvidas quanto a isso, mas é preciso qualificar um pouco.
Uma investigação mais aprofundada, por exemplo, nas duas ultimas pesquisas do Datafolha, as de junho e agosto, mostra que em todos os segmentos socioeconômicos e demográficos pesquisados o presidente melhorou sua avaliação de junho para agosto: sexo, cor, idade, escolaridade, renda familiar, região geográfica, natureza do município (região metropolitana e interior) e ocupação principal. Esse upgrade de popularidade adveio também de estratos que não se beneficiam do auxílio emergencial, como empresários, funcionários públicos, pessoas com renda acima de 10 salário mínimos, etc. Então fica claro que o auxílio foi o carro-chefe da melhoria da avaliação, mas não foi o único fator.
Outros fatores devem ter sido intervenientes, tais como: a flexibilização do afastamento social, a retomada de algumas atividades econômicas, um discreto aumento no nível de emprego, certas perspectivas de reformas estruturais e um pouco da própria mudança comportamental do presidente. Então, nesse novo contexto de popularidade, Bolsonaro pode ter influência nas eleições municipais no Brasil todo, inclusive em Pernambuco.
ALGO MAIS: No Recife, especificamente, como o senhor analisa a eventual influência do presidente e como vê as pré-candidaturas postas até agora?
MR: O quadro de pré-candidatos no Recife delimitou o espaço político-ideológico em dois campos bem definidos: centro-esquerda e centro-direita. O primeiro representado pelas postulações do PSB (João Campos) e do PT (Marília Arraes), e o segundo composto pelo DEM (Mendonça Filho), Cidadania (Daniel Coelho) e pelo Podemos (delegada Patrícia) e por outros candidatos de menor expressão eleitoral.
As poucas pesquisas que foram publicadas até agora sobre a eleição do Recife mostram um quadro ainda muito embolado em termos de intenção de votos, com ligeira liderança numérica de Marília Arraes. Só mais à frente, com sucessivas pesquisas, é que o ambiente ficará mais desanuviado e se poderá fazer alguma prospecção para o futuro.
As duas alas têm dificuldades nas suas postulações. No campo centro-esquerda o PSB tem que lidar com o longo período do partido no poder em Pernambuco, a chamada fadiga de material, os problemas enfrentados pela prefeitura numa cidade complexa como o Recife, especialmente na questão da pandemia, etc.
A candidatura do PT já nasce urdida por uma cisão no próprio partido e se posiciona em aberrante contradição: o partido tem candidata à prefeitura, portanto não quer que o PSB continue no governo, mas, ao mesmo tempo, é aliado do PSB, mantém cargos nos governos estadual e municipal e, ainda por cima, anuncia que fará campanha sem atacar o partido governista. Essa incongruência não tem como se sustentar, vai confundir o eleitor e cedo ou tarde vai desaguar em um sério conflito na campanha.
No outro campo, o de centro-direita, o desentendimento em torno de uma candidatura única já anuncia que as forças dessa ala sairão divididas na campanha, correndo o risco de reeditar fracassos anteriores. Impera aí o individualismo. Ademais, não se vê até o momento as pré-candidaturas dessa ala empolgando os eleitores. Entretanto, se o centro-direita conseguir colocar alguém no segundo turno, terá altíssima probabilidade de ganhar a eleição, por conta da divisão do centro esquerda.
Quanto à influência do presidente na eleição no Recife será obviamente no campo centro-direita. Aí parece que o candidato do DEM se tem apresentado com mais chances de receber apoio dos bolsonaristas. Se isso acontecer é um reforço e tanto do ponto de vista eleitoral, já que no Recife a aprovação do governo do presidente tem aumentado e a desaprovação diminuída. Mas, no geral, o quadro do pleito de 2020 no Recife ainda não tem favoritos.
ALGO MAIS: Ainda sobre o Recife, nota-se que os candidatos mais à esquerda procuram nacionalizar a campanha com fortes críticas ao governo Bolsonaro, e os candidatos mais à direita buscam municipalizar a campanha com ataques à gestão do PSB. Qual a estratégia mais adequada?
MR: A estratégia mais adequada depende da época, do lugar, da conjuntura. A estratégia é uma função do momento político. Em 2008, por exemplo, a elevada aprovação do governo federal ensejou uma tática narrativa de candidatos da sua base de apoio de “nacionalizar” as campanhas municipais, exaltando a excelência da administração central e a capacidade de realizar parcerias com o governo. Nacionalizar a campanha naquela época foi a estratégia acertada, como se viu com o resultado final da eleição. À oposição só restou “municipalizar” as campanhas, direcionando o debate para fatores locais: a iluminação da praça, o calçamento da rua, o lixo, o trânsito, etc. Era uma derrota anunciada.
No contexto político-eleitoral de hoje, no Brasil, com jogo político exibindo certo equilíbrio, onde não há predominância de uma força sobre outra como em 2008, a nacionalização da campanha terá pouca repercussão em termos de sensibilização do eleitor. Eu diria que é uma pregação para convertidos, não tem alavanca para cooptar eleitor do outro campo. È válida como complemento secundário do discurso localista, como posicionamento político, mas se for alçada à condição protagônica do discurso, não surtirá efeito nenhum em termos eleitorais.
Isso é válido para vários lugares e especialmente para a eleição do Recife, onde a oposição vai concentrar suas baterias nas dificuldades da administração local e a situação vai fugir desse debate, direcionando o foco para os problemas do país no governo Bolsonaro.
Eu diria até que em uma conjuntura política assim, com os dois lados em pé de igualdade, polarizados, com as pesquisas apontando que metade da população aprova o presidente e metade desaprova, as questões nacionais perdem relevância e as peculiaridades locais se sobressaem, e o que vai diferenciar os candidatos serão suas propostas localistas, de resolução dos problemas do município.
ALGO MAIS: Recentemente, o aborto realizado no Recife, de uma menina de 10 anos que foi estrupada pelo tio, provocou manifestações fervorosas de militantes e políticos religiosos contrários à interrupção da gravidez. O senhor acredita que as questões morais terão peso nesta e nas próximas campanhas eleitorais?
MR: Até a campanha de 2018 a sociedade brasileira estava acostumada com o eterno embate PT x PSDB, que são variantes locais da social-democracia. São partidos que têm muitas divergências sociais, econômicas e políticas, mas respeitam as instituições e convivem com certa harmonia nos campos cultural e moral. A reedição desse embate não ocorreu em 2018, como muita gente esperava. O que aconteceu?
No decorrer da campanha passada para presidente o sistema político tradicional e as burocracias partidárias ignoraram o recado das ruas físicas e virtuais dado nas insurgências de 2013. E daí surge Bolsonaro, capitalizando o sentimento das ruas: aparecendo como o candidato anti-sistema, anticorrupção, antilulopetista, em prol da segurança, e que restabeleceria a autoridade (lei e ordem). Nesse contexto, disseminou uma grande onda conservadora, trazendo à baila símbolos moralistas como a Família, a Religião e as Forças Armadas.
As questões morais tiveram, portanto, grande peso naquela eleição. Posteriormente, a própria sociedade foi rejeitando os extremismos, rechaçando os arroubos fundamentalistas e coibindo as tentativas institucionais de adoção de medidas intolerantes.
Creio que as questões morais ainda continuarão tendo importância nesta e nas eleições vindouras, mas não como no pleito passado. E continuarão a ter relevância porque o povo brasileiro é por índole, por cultura, por sua história, um povo conservador do ponto de vista de sua formação. É religioso, tradicional nos costumes, pacato, conciliador, de apego familiar. Uma candidatura que não respeite esse status quo está fadada à derrota.
Mas voltando ao caso da menina que você citou, a questão do aborto sempre foi extremamente controversa entre nós, exarcebada agora por essa polarização político-ideológica vivenciada no Brasil. O problema é a forma maniqueísta de como a questão é colocada: a favor ou contra.
A favor é a favor e pronto. Entre os que são contra, há uma corrente mais ortodoxa que não concorda com a interrupção da gravidez em nenhuma circunstância. Mas, mesmo neste conjunto do contra, existe uma parcela que até a aceita, desde que em condições excepcionais. E a excepcionalidade foi o caso agora. Uma criança de 10 anos não reúne condições biológicas, psicológicas e cognitivas para ser mãe. Mas, como eu disse, muita gente advoga a preservação da vida em qualquer circunstância, daí o fervor do debate. É um tema tabu, que os políticos evitam tratar nas eleições.
Revista Algo Mais, edição 173.4 – agosto 2020
24/08/2020