O ESTABELECIMENTO DE COTAS PARA MULHERES NOS PARLAMENTOS BRASILEIROS

 

            Maurício Costa Romão

O Senado Federal aprovou, em primeiro turno, no dia 25 do corrente, Proposta de Emenda à Constituição nº 98/2015 que reserva quantidade mínima de vagas, por gênero, nas representações legislativas em todos os níveis federativos.

O objetivo por trás da proposta é aumentar a participação feminina na política, em especial nos Parlamentos brasileiros, considerada muito baixa para os padrões internacionais.

Aumentar a representatividade feminina nas Casas Legislativas através de cotas é tema controverso, assim como o é, de resto, o estabelecimento de cotas sociais e raciais em geral. Mas não é este o foco dos comentários que se seguem.

O propósito destas notas é mostrar que o texto legal aprovado no Senado é completamente desprovido de sentido e de aplicabilidade.

Introduzido pela referida PEC o novo art. 101 das Disposições Transitórias da Carta Magna assegura a cada gênero, nas três legislaturas subsequentes à promulgação da emenda, representação nos Parlamentos na proporção não inferior a 10%, 12% e 16% das cadeiras, respectivamente.

Assim, por exemplo, em 2018, das 25 vagas de deputado federal por Pernambuco, as mulheres não deveriam ocupar menos que 2,5 cadeiras na Câmara Baixa. Quer dizer, para elas estariam garantidas três cadeiras, no mínimo*.

Como se dará o preenchimento dessas cadeiras? A operacionalização do mecanismo está prevista nos §§ 1º e 2º do art. 101, in verbis:

“§ 1º Caso o percentual mínimo de que trata o caput não seja atingido por um determinado gênero, as vagas necessárias serão preenchidas pelos candidatos desse gênero com a maior votação nominal individual dentre os partidos que atingiram o quociente eleitoral.”

 

“§ 2º A operacionalização da regra prevista no § 1º dar-se-á, a cada vaga, dentro de cada partido, com a substituição do último candidato do gênero que atingiu o percentual mínimo previsto no caput, pelo candidato mais votado do gênero que não atingiu o referido percentual.”

Imagine-se, à guisa de exercício ilustrativo, a aplicação da PEC nas eleições de 2014 para deputado federal em Pernambuco. Somente uma mulher foi eleita: Luciana Santos (PC do B). Portanto, o percentual mínimo de três mulheres não teria sido atingido.

O § 1º diz que as duas mulheres que faltam para preencher as vagas deverão ser buscadas naquelas candidatas de maior votação nominal dentre os partidos que atingiram o quociente eleitoral.

Já o § 2º reza que as duas candidatas mulheres mais votadas dentro de suas respectivas agremiações devem ocupar o lugar dos dois homens menos sufragados dos mesmos partidos.

Aqui há certamente uma impropriedade.

Na eleição pernambucana referida todos os deputados foram eleitos por coligações (três coligações elegeram os 25 parlamentares: uma elegeu 18, outra 6 e a terceira 1).

No interior de uma dada coligação os partidos perdem identidade e a coligação funciona como se partido fora. Quem atinge o quociente eleitoral é a coligação, não são seus partidos integrantes.

Logo, não haveria como aplicar o art. 101 à eleição de 2014 em Pernambuco. A nova regra constitucional só se aplica a partidos que atingem o quociente eleitoral. Não abrange as coligações**.

Mesmo que, numa interpretação forçada, se considerem apenas partidos, a norma é imprópria.

Com efeito, em 2014 nada menos que 31 partidos disputaram o pleito de deputado federal em Pernambuco, mas apenas sete partidos individualmente ultrapassaram o quociente eleitoral.

Pelo texto, a nova PEC só se valeria para esses sete partidos. Mas esses partidos preencheram apenas 19 das 25 vagas. E as seis vagas restantes, não contam para a questão de gênero?

O legislador não atentou para o fato de que alguns partidos não atingem o quociente eleitoral e, ainda assim, elegem representantes, desde que estejam abrigados em alianças. Pelos anacrônicos §§ do art. 101 tais partidos não estariam sujeitos à permuta eventual de gênero.

Ainda tomando como exercício a eleição de 2014, as duas candidatas mulheres mais bem votadas entre as suplentes foram Isabela de Roldão (PDT), que teve 33.016 votos, e Cleuza Pereira (PSB), cuja votação foi de 24.775 votos.

Seriam elas que se juntariam a Luciana Santos, constituindo, pela exigência do caput do art. 101 e de seus §§, a tríade do gênero feminino da bancada de Pernambuco na Câmara dos Deputados?

Não dá para saber por essa norma, pois ela é intrinsecamente inconsistente e operacionalmente inaplicável.

As candidatas mencionadas não são suplentes de seus partidos e sim das coligações com as quais os seus partidos se compuseram. Mas a nova regra legal não prevê coligações. E agora?

Mas, siga-se em frente só para demonstrar o surrealismo da norma em apreço.

Na votação por partido nota-se que o PSB ultrapassou o quociente eleitoral, mas o PDT não. Cleuza ascenderia ao Legislativo, mas Isabela não. Ficaria faltando uma mulher do trio.

Percorra-se a lista de suplentes do TSE, por ordem de maior votação nominal, para achar uma mulher que se candidatou por um partido que ultrapassou o quociente eleitoral.

Chega-se a Malba Cavalcanti (PSB), com 1.125 votos, depois de passar por quatro candidatas mais bem votadas do que ela, porém pertencentes a partidos que não superaram o quociente eleitoral.

Admita-se, nesse teatro do absurdo, que Cleuza e Malba ingressem no Parlamento. Dois componentes do gênero masculino precisam sair. São dois do mesmo partido, o PSB: deputados Gonzaga Patriota, que teve 101.452 votos, e Marinaldo Rosendo, que recebeu 97.380 votos.

A confusão estaria deflagrada. Parlamentares e suplentes iriam às barras dos tribunais competentes.

Isabela demandaria uma vaga sob o argumento que ela é a suplente mais bem votada da coligação da qual o PDT fez parte. E ela estaria certa: a vaga é da coligação e não do partido.

A suplente mais bem votada do que Malba, Josefa Patriota (PV), que fora preterida pelo fato de seu partido não ter ultrapassado o quociente eleitoral, exigiria o lugar de Malba sob a alegação de que a vaga pertence à coligação da qual o seu partido foi integrante. 

Os dois homens defenestrados no processo alegariam, com razão, que quem deveria sair não seriam eles e sim os dois deputados últimos colocados na sua coligação: Luciana Santos e Mendonça Filho (DEM). Ops!… Luciana não pode sair, então sobraria para Betinho Gomes (PSDB), o terceiro da lista dos menos votados da coligação da qual o PSB fez parte.

Há ainda casos extremos não previstos na legislação aprovada, casos em que, numa dada eleição, para determinado cargo, não haja mulheres entre as suplentes, por ordem de votação, que preencham os requisitos do art. 101 e de seus §§. 

Por exemplo, imagine-se que na busca por duas candidatas suplentes mais votadas só se ache uma que atenda aos ditames da lei. Como ficaria essa situação?

Apenas uma candidata suplente mais votada ascenderia ao Parlamento, substituindo alguém do gênero masculino. Mas este alguém que perdeu o lugar não teria razão em dizer que a norma não poderia ser aplicada parcialmente? Argumentaria, com razão, que ou se cumpre o percentual de 10% de cadeiras para as mulheres ou não se cumpre.

E, ainda hipotetizando no âmbito desse  nonsense, correr-se-ia o grande risco de alguém alegar que a eleição deveria ser anulada, pois os ajustes de gênero, efetuados depois da composição original de votos e alocação de cadeiras, alteraram os votos válidos dos partidos ou coligações.

De fato, ainda que o quociente eleitoral permaneça o mesmo, já que a troca de gênero dá-se entre suplentes e eleitos, há modificação numérica nos votos válidos dos partidos ou coligações submetidos à permuta de gênero, o que mexe com os quocientes partidários dos envolvidos e a consequente distribuição de sobras. Uma nova composição da Casa Legislativa pode daí emergir, por menor que seja.

Ainda bem que os senadores têm um segundo turno para reparar o duplo equívoco: a instituição da cota e a legislação que a sustenta.

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Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia, é consultor da Cenário Inteligência e do Instituto de Pesquisas Maurício de Nassau. https://mauricioromao.blog.br.mauricio-romao@uol.com.br 

*O caput do art. 101 diz que 10%, 12 % e 16% das cadeiras asseguradas a cada gênero são percentuais mínimos e que são vedados patamares inferiores a eles, respectivamente. Uma redação mais correta deveria estabelecer que são vedados patamares iguais ou inferiores a eles. No caso acima descrito, em que 10% das cadeiras correspondem a 2,5 cadeiras, a nova redação não deixaria dúvida de que qualquer gênero teria direito a 3 cadeiras, no mínimo.

** Uma redação mais apropriada do § 1º seria:

“… as vagas necessárias serão preenchidas pelos candidatos desse gênero com a maior votação nominal individual dentre os partidos ou coligações que atingiram o quociente eleitoral.”

 

E no § 2º:

“… a operacionalização da regra prevista no § 1º dar-se-á, a cada vaga, dentro de cada partido ou coligação…”

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