O BRASIL COMO LABORATÓRIO DE EXPERIMENTOS ELEITORAIS

 

(Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 28 de abril de 2015)

Maurício Costa Romão

Na questão dos modelos eleitorais tratados no âmbito da reforma política no Congresso Nacional, suas excelências nunca se debruçaram sobre quais são exatamente os problemas do sistema proporcional brasileiro e de que maneira eles poderiam ser corrigidos. A idéia fixa que presidiu o debate sempre foi mudar de sistema, para qualquer sistema!

Pelo que emergiu de propostas substitutivas do modelo em uso, apresentadas na legislatura passada, o País seria transformado em um imenso laboratório de experimentação de sistema de voto. Eis algumas das sugestões discutidas:

(1)Distritão (cúpula do PMDB); (2)Distritão misto (cúpula do PMDB); (3)Distrital puro (PSDB, DEM, outros); (4)Distrital misto (diversos); (5)Proporcional misto (relator da reforma, Henrique Fontana, PT-RS); (6)Proporcional misto “flexível” (relator da reforma, Henrique Fontana); (7)Proporcional misto em dois turnos (Projeto Eleições Limpas, OAB e outros); (8)Distrital proporcional (Grupo de Trabalho da Câmara Federal); (9)Lista fechada (PT).

Registre-se que a erupção de propostas “mistas” deriva da impossibilidade de fazer avançar no Congresso as sugestões de modelos “puros”, conforme reconheceu o relator da reforma na legislatura recém-finda.

Já neste exercício o plenário da Câmara aprovou a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição 352/13, que resultou das discussões do Grupo de Trabalho de Reforma Política na legislatura passada e que serve de base para a nova Comissão Especial de Reforma Política da Câmara.

O modelo eleitoral constante desta PEC (o “distrital proporcional”)se enquadra bem nesse contexto experimental: mantém a eleição proporcional, só que em distritos de quatro a sete lugares a preencher na Câmara Federal, e adiciona uma leve pitada de componente majoritário.

O amálgama dos elementos majoritário e proporcional deu-se apenas para facilitar trâmites da proposta. Com efeito, no relatório do projeto, às páginas 12 e 13, diz-se textualmente que o modelo não é o preferido por nenhum dos membrosdo Grupo de Trabalho, porém “por não fugir totalmente às características do sistema em vigor, pode alcançar com mais facilidade a aprovação da maioria”.

E é este o lamentável ponto a que se chegou nos debates do Parlamento: suas excelências passaram a operar esdrúxulas mutações nos modelos tradicionais, de sorte a superar obstáculos de tramitação dos projetos.

Nunca é demais repetir, todos os sistemas eleitorais têm vantagens e desvantagens e é inapropriado falar-se de superioridade de um sistema sobre outro. De fato, já está assentado na literatura especializada que não existe sistema eleitoral perfeito (teorema de Arrow) e não há nenhum método de divisão proporcional justo (teorema da impossibilidade de Balinsky e Young).

Ademais, num estudo em que faz um mapeamento internacional de atributos desejáveis dos sistemas eleitorais, o cientista político Jairo Nicolau mostra que alguns atributos são satisfeitos por certos sistemas, mas não o são por outros, e nenhum sistema satisfaz a todos os atributos.

O corolário desses achados empíricos e teóricos não poderia ser outro: migrar de um sistema para outro envolve ganhos e perdas.

A pergunta então é: diante da “equivalência” dos sistemas de voto e dos obstáculos no Congresso Nacional, por que ao invés de se intentar uma mudança radical de sistema, não tratar esta parte da reforma política como um processo, operando lipoaspirações no modelo atual, de maneira a extrair suas deformações mais gritantes, aperfeiçoando-o?

E há bastante espaço para isso. Poder-se-ia, por exemplo, acabar com as coligações proporcionais, que são responsáveis pelas maiores deformações do sistema eleitoral brasileiro, posto que, além de episódicas e incoerentes, incentivam o mercado de aluguel de siglas, desqualificam o voto de legenda e alteram a vontade do eleitor.

Sabe-se, contudo, que sua extinção encontra fortíssima resistência entre partidos e parlamentares e, portanto, qualquer proposta nesse sentido terá sempre dificuldade de avançar no Congresso. Tudo bem. Se a convivência com as coligações for inevitável, introduzam-se mudanças na sua sistemática com o fito de aprimorá-las.

Uma delas salta à vista pela distorção que acarreta: no mecanismo atual a alocação de cadeiras intracoligação não se processa de acordo com a votação correspondente de cada agremiação participante da aliança. Os candidatos que receberem mais votos no interior da aliança são os eleitos, independentemente de que partido são egressos. Se, ao invés, se institui o critério da proporcionalidade (as cadeiras são obtidas de acordo com a proporção de votos dos partidos) o modelo dá um grande salto qualitativo.

Outros importantes melhoramentos são passíveis de ser encetados, a exemplo da eliminação do transbordamento de votos do puxador para candidatos de baixa votação (o “efeito Enéas”), via cálculo do quociente eleitoral em duas etapas ou, alternativamente, explicitando-se cláusula de barreira individual para ascensão ao Legislativo.

Poder-se-ia também corrigir uma incoerência do sistema, que proíbe os partidos que não alcançam o quociente eleitoral de participar da distribuição de sobras de votos, alijando possibilidades de ascensão ao Legislativo de agremiações com certa dimensão eleitoral.

Um bom exemplo deste fenômeno, corriqueiro nas eleições, aconteceu com o Psol em 2010 no Rio Grande do Sul. Luciana Genro foi a 9ª candidata mais votada do pleito para deputado federal, mas não conseguiu ser eleita porque o Psol, seu partido, não atingiu o quociente eleitoral. Disputasse as sobras, o Psol conquistaria uma vaga para Luciana, a quinta, das que foram distribuídas por média.

Enfim, estes são apenas alguns exemplos de que é possível avançar no aprimoramento do sistema proporcional vigente há 70 anos no País. Existe um vasto campo de ajustes a ser explorado, mas para isso os congressistas precisam fazer o que não fizeram até agora: deixar as provetas de testes de lado e discutir o mecanismo em uso.

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Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia, é consultor da Cenário Inteligência e do Instituto de Pesquisas Maurício de Nassau. https://mauricioromao.blog.br.mauricio-romao@uol.com.br

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