Por Maurício Costa Romão
CARTA DE UM DIRIGENTE PARTIDÁRIO A UM DEPUTADO POUCO NOBRE
“A simulação e a mentira também são, no fundo, modos de se esconder. Você pode se esconder vestindo uma máscara ou pode se esconder mentindo. Vestindo uma máscara ou mentindo, você mostra aquilo que não é”. [Bobbio & Viroli (2001). Diálogo em Torno da República, p.115].
Excelentíssimo Senhor
Deputado …………
Na qualidade de presidente estadual do Partido Independente Nacional (PIN) fui comunicado por V.Exa., oficialmente, de que pretendia desligar-se de nossa legenda, até o prazo legal determinado pela legislação eleitoral em vigor, de sorte a poder candidatar-se ao próximo pleito proporcional por outra sigla partidária.
No comunicado, V.Exa. faz um retrospecto de sua atuação como membro do partido, ressaltando sua dedicação às hostes da nossa agremiação. Registra ainda V.Exa. – e diz fazê-lo por dever de justiça – o apoiamento que recebeu da direção partidária ao longo do tempo de sua filiação.
No texto enviado, não há explicitação clara sobre os motivos pelos quais V.Exa. está prestes a deixar a sigla que o acolheu até agora, exceto quando faz uma vaga menção às dificuldades de renovar o mandato, concorrendo por nossas cores, por conta da “conjuntura eleitoral adversa”.
Em resposta a V.Exa. fizemos questão de deixar patente a sua sempre correta e solidária participação nos destinos de nossa legenda, restando-nos lamentar – e o fizemos, queremos crer, expressando o pensamento de uma grande parte dos nossos filiados mais atuantes – a sua inesperada saída, depois de tantos anos de respeitoso e amigável convívio partidário.
Convívio este que nos motivou a antecipar a V.Exa., extraoficialmente, nosso intento em advogar, no âmbito da executiva estadual, a não reivindicação, pelo partido, conforme faculta a Lei Eleitoral vigente, do mandato que ora V.Exa. carrega consigo para se abrigar em outra legenda.
Qual não foi nossa surpresa, contudo, e, de resto, a de muitos dos nossos companheiros, quando nos deparamos com o teor de várias entrevistas concedidas por V.Exa. aos nossos principais meios de comunicação, logo após o seu desligamento. Em um dos seus pronunciamentos, V.Exa. diz, textualmente, que sai do PIN por “não concordar com a orientação do partido, em face do novo momento político em que vivemos, mais particularmente, pela ausência de espaço democrático interno para discussão de matérias relevantes”.
Em outro depoimento, contundente e incriminador, e houve outros nesse mesmo contexto, V.Exa. chega até mesmo a dizer que se sentia “asfixiado dentro do partido” pois a executiva, tendo à frente o seu presidente, “voltava-se sempre para uns poucos parlamentares preferidos pela cúpula. Não havia mais espaço para mim. Cansei”.
As palavras de V.Exa. estarreceu-nos a todos que fazemos o dia-a-dia de nossa agremiação, particularmente pelo alarde público com que foram proferidas e, em especial, pelas inverdades do seu conteúdo.
O grande público, incluindo uma parte dos seus eleitores, que desconhece os reais motivos de sua atitude, pode até depreender de seus pronunciamentos que V.Exa. promove tão brusca mudança partidária, indo alojar-se em cores outras que, por sinal, sempre combateu ferrenhamente durante sua trajetória política, em função mesmo de suas dificuldades de relacionamento e de apoiamento partidários.
Nós outros, do PIN, entretanto, e membros da classe política em geral e, muito especialmente, V.Exa, sabemos exatamente as razões pelas quais V.Exa. se está afastando das nossas lides: falta de votos!
Não tem nada a ver com “espaço”, “orientação”, “asfixia”, etc. Isso é discurso para justificar a gravidade da decisão de V.Sa. perante o público e os eleitores. O motivo central – e V.Exa. sabe muito bem disso – foi a dura realidade da carência de votos. Nada mais que isso.
Na verdade, o que ocorreu, de fato, foi que V.Exa., que a cada pleito sucessivo tem-se elegido com crescente dificuldade, se deu conta de que sua votação esperada para o próximo embate nas urnas seria insuficiente para guindá-lo, mais uma vez, ao parlamento, caso permanecesse abrigado na nossa legenda, possuidora de quadros com apreciável densidade eleitoral.
Concluiu, portanto, que concorrendo por outra bandeira partidária teria maior probabilidade de sucesso. Até aí tudo bem. V.Exa. fez um cálculo realista de sobrevivência político-eleitoral e inferiu que o melhor para a tentativa de renovação de mandato seria buscar guarida em uma agremiação que lhe permitisse maiores chances eleitorais de assunção ao legislativo. Rationale perfeitamente normal.
Tanto assim é que V.Exa. não está sozinho nessa empreitada. O “troca-troca” de partidos, mesmo com as restrições legais impostas recentemente, tem sido uma constante no ambiente eleitoral do país. E o motivo principal dessa mudança rotineira – e na maioria esmagadora dos casos, único – é quase sempre o mesmo: sobrevivência político-eleitoral, decorrente da ausência de matéria-prima para conquista de mandatos parlamentares: voto!
Na verdade, Deputado, o próprio sistema eleitoral do país estimula esse anacronismo, que não se vê em lugar nenhum do mundo contemporâneo.
Com efeito, desde os primórdios da relação entre candidato-filiado e partido, não se estabelece, de fato, nenhum vínculo programático entre eles, posto que o caráter dessa relação é de mero oportunismo eleitoral: o candidato busca concorrer pela legenda que lhe propicia maiores possibilidades de ser eleito, independente de conotações programáticas ou ideológicas.
Por conseguinte, não se institui, e já de partida, um elo mais estreito entre candidato e legenda, que envolva afinidades político-ideológicas. Os partidos passam a ser apenas associações através das quais o candidato pavimenta o caminho para chegar legalmente ao parlamento.
Ademais, o sistema proporcional de lista aberta em vigor no país, como V.Exa. bem sabe, assegura vagas parlamentares aos partidos ou coligações que ultrapassam o quociente eleitoral, sendo os ocupantes dessas vagas os candidatos que lograrem obter as maiores votações no âmbito interno do partido ou coligação.
A batalha pela conquista de votos se dá, então, paradoxalmente, entre postulantes de uma mesma agremiação ou aliança partidária, e não entre tais postulantes e concorrentes de outras siglas. O desempenho eleitoral de candidatos das demais agremiações é completa e totalmente irrelevante. O que importa para o candidato é como ele se situa no cotejo de votos intra-partido ou intra-coligação. Ora, se os adversários do candidato são os próprios companheiros de chapa, torna-se desnecessário debates programáticos com postulantes de outras siglas, disputantes no mesmo pleito.
Deduz-se, assim, que o candidato não se sente compromissado a “defender as cores do partido”, simplesmente porque não é ungido a fazê-lo. As circunstâncias eleitorais, que o obrigam a preocupar-se apenas com a performance interna dos companheiros de chapa, dispensam-lhe de posicionar-se programaticamente. Sua relação mais próxima passa a ser com o eleitor, não com o partido e ele passa a desenvolver um modus operandi de comunicação com o eleitor completamente à margem das questões ideológico-partidárias.
Para acentuar esse descompromisso, os próprios partidos – e aí falamos, não sem penitência, por experiência própria de longo exercício de direção partidária – quase nunca interferem na forma pela qual cada candidatura de seus filiados é estruturada e veiculada durante a campanha. A responsabilidade por praticamente todos os aspectos desse período eleitoral é do candidato, inclusive os de ordem financeira.
Desenvolve-se, desse jeito, desde o nascedouro, uma relação meramente formal entre filiado-candidato e partido. Uma relação fria, sem paixão, apenas de conveniência.
Não é de se estranhar, pois, a postura do candidato-eleito durante o exercício do mandato parlamentar. Da feita que todo o percurso trilhado até o parlamento foi galgado com total independência das hostes partidárias, o recém-eleito se sente à vontade para continuar a exercitar sua individualidade, procurando manter apenas os vínculos formais que o atrelaram historicamente à legenda pela qual foi eleito. A cobrança de “fidelidade” partidária no parlamento se dá, ocasionalmente, por intermédio dos líderes, apenas em algumas votações consideradas estratégicas. Fora disso, é cada um por si.
Fazemos todas essas ponderações, Deputado, para que V.Exa. saiba que não nos cabe cobrar coerência e fidelidade partidárias de quem quer que seja, quando o próprio sistema eleitoral do país é eivado de tantos anacronismos e, em particular, tem a característica de exacerbar o caráter individualista da representação parlamentar, com notório enfraquecimento dos partidos enquanto instituições políticas.
O que cobramos – e aí sim, o fazemos com veemência – é coerência ética! Rezam os princípios republicanos, para usar termos em voga, que V.Exa. deveria ter-se dirigido ao público, parte do qual atônito com seu procedimento, simplesmente dizendo o real motivo de sua mudança: “minha saída do PIN não tem nada a ver com o partido. Deve-se única e exclusivamente à constatação de que disputando a próxima eleição pela sigla tal terei mais chance de me eleger”. E pronto!
Mas não! V.Exa. preferiu usar de pretextos para escamotear a verdade – a crua verdade da falta de votos – junto a seus eleitores, mediante argumentos injustificáveis do ponto de vista moral, faltando descaradamente com a verdade e atingindo de maneira torpe o nosso partido e seus dirigentes,
Desnecessário dizer que o clima de revolta que se instalou no seio da nossa agremiação, pelos ataques gratuitos e mentirosos desferidos por V.Exa., tornou impossível evitar, como era a intenção original, a reivindicação imediata, nas esferas jurídico-eleitorais competentes, do mandato parlamentar exercido por V.Exa. – e que pertence de fato e de direito ao nosso partido.
Atenciosamente
…………………………………………………….
Presidente da Executiva Estadual
Partido Independente Nacional
(Esta carta, fictícia, aborda de forma crítica as constantes mudanças de partido levadas a efeito por parlamentares e a fragilidade da relação candidato/partido).