CRISE DE IDENTIDADE

Maurício Costa Romão

O jurista Ives Gandra da Silva Martins, em artigo na Folha de S.Paulo (7/05), intitulado “Reforma política para o bem do país”, afirma que a seccional de São Paulo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que congrega 40% dos advogados brasileiros, já levou ao Congresso Nacional suas sugestões sobre reforma política, “que não seguem as originárias do projeto do PT, encampadas pelo Conselho Federal da OAB…”. 

A proposta da OAB nacional, líder de movimento denominado Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas , que reúne mais de 100 entidades e organizações da sociedade civil, como CNBB, UNE, CUT, Contag, consiste, simplificadamente, de quatro pontos principais:

  1. Proibição de financiamento de campanha por empresas e adoção do Financiamento Democrático de Campanha;

     

  2. Eleições proporcionais em dois turnos;

     

  3. Paridade de gênero na lista pré-ordenada;

     

  4. Fortalecimento dos mecanismos da democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes.

Pelo seu conteúdo, o projeto da OAB ficou carimbado, urbi et orbi, como derivação terceirizada do projeto petista. Daí a referência explícita do jurisconsulto Ives Gandra.

De fato, além do namoro com a democracia direta e com o aumento do financiamento público de campanha, o modelo de sistema eleitoral da OAB também se aproxima do proposto pelo PT e, eventualmente, os dois se igualam. É sobre este ponto que o presente texto se debruça.

Na sugestão da OAB nacional as eleições serão realizadas em dois turnos. No primeiro, os eleitores votarão apenas nos partidos ou coligações (que apresentarão lista pré-ordenada de candidatos em número correspondente ao dobro de vagas em disputa).

Definidas as vagas conquistadas, os partidos submetem a julgamento do eleitor, no segundo turno, uma lista pré-ordenada de candidatos em número equivalente ao dobro das vagas obtidas. Os candidatos mais votados dos partidos ou coligações, no segundo turno, serão considerados eleitos.

Ao denominar o modelo de “proporcional misto” os signatários da Coalizão quiseram certamente evitar a crítica de estarem apresentando uma sugestão de “lista fechada”, defendida renhidamente pelo PT, de grande rejeição, o que dificultaria sua aceitação popular e, certamente, o trâmite e aprovação no Congresso Nacional.

Na verdade, entretanto, os contornos do mecanismo são essencialmente os de um modelo de lista fechada flexível (os eleitores podem modificar a posição dos nomes na lista, o que, na proposta da OAB, é facultado fazê-lo no segundo turno), apenas com a desnecessária complicação de dois turnos.

Ademais, a prerrogativa que é concedida ao eleitor de votar em candidatos de sua escolha no segundo turno (fato alardeado pelos proponentes do modelo da OAB como diferenciador do tradicional sistema de lista pré-ordenada) propicia-lhe apenas liberdade parcial, já que os candidatos foram definidos e ordenados sequencialmente pelos partidos no primeiro turno.

Não raro poderá acontecer de entre os candidatos submetidos ao crivo do eleitor na segunda etapa não haver ninguém de sua preferência, seja porque seu candidato não estava na lista original confeccionada pelo partido, seja porque mesmo estando pré-ordenado na lista, não passou para o segundo turno por conta de restrições numéricas.

Considere-se um exemplo in extremis: os partidos podem apresentar, no máximo, o dobro de candidatos em relação às vagas em disputa (art. 5º, § 2º, do projeto de lei da Coalizão). Admita-se que um partido, por conveniência estratégica, concorra com apenas quatro candidatos, número bem abaixo das vagas de determinado Legislativo.

Imagine-se que na apuração final do pleito no primeiro turno o hipotético partido conquiste quatro vagas. O partido iria assim para o segundo escrutínio com apenas quatro candidatos já carimbados como eleitos na primeira etapa e que serão apenas referendados no segundo turno.

Aí se estaria no clássico sistema de lista fechada e a proclamada liberdade de escolha do eleitor não existiria, nem de forma parcial.

Os propositores do modelo de voto da Coalizão podem chamá-lo de qualquer nome. Não importa. O mecanismo continua sendo o de lista pré-ordenada flexível e, dependendo da situação, nem flexível é.

———————————————————-

Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia, é consultor da Cenário Inteligência e do Instituto de Pesquisas Maurício de Nassau. https://mauricioromao.blog.br.mauricio-romao@uol.com.br

 

 

 

Deixe um comentário