Maurício Costa Romão
Preliminares
Tem tido enorme repercussão no Brasil o lançamento do projeto intitulado resumidamente de Projeto Eleições Limpas (PEL), de reformulação do sistema político brasileiro, subscrito por respeitadas instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), e mais de 100 entidades da sociedade civil.
Os proponentes do PEL,através do movimento da Coalizão Nacional em Defesa da Reforma Política Democrática, intentam buscar apoiamento na sociedade mediante a coleta de 1,5 milhão de assinaturas para apresentá-lo ao Congresso Nacional na forma de projeto de lei de iniciativa popular.
O Projeto consiste, simplificadamente, de quatro pontos principais:
- Proibição do financiamento de campanha por empresas e adoção do Financiamento Democrático de Campanha;
- Eleições proporcionais em dois turnos;
- Paridade de gênero na lista pré-ordenada;
- Fortalecimento dos mecanismos da democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes.
Em que pese o inegável prestígio das entidades que abraçam o referido Projeto, o que em si já é um atestado de que seu conteúdo está eivado de sérios propósitos, temos chamado à atenção para vários problemas que danificam a formulação do modelo de sistema eleitoral embutido na proposta (item 2, acima).
É oportuno deixar claro, de início, que as restrições apontadas não se direcionam ao conjunto do PEL, mas apenas e tão somente ao modelo eleitoral apresentado.
O sistema eleitoral do PEL
Na sugestão do PEL as eleições proporcionais serão realizadas em dois turnos. No primeiro, os eleitores votarão apenas nos partidos ou coligações (que apresentarão lista pré-ordenada de candidatos em número correspondente ao dobro de vagas em disputa).
Definidas as vagas conquistadas, os partidos submetem a julgamento do eleitor, no segundo turno, uma lista pré-ordenada de candidatos em número equivalente ao dobro das vagas obtidas.
Os candidatos mais votados dos partidos ou coligações, no segundo turno, serão considerados eleitos.
O diagrama abaixo sintetiza o teor da proposta:
Os problemas do sistema eleitoral do PEL
As restrições ao mecanismo proposto no PEL derivam de várias ordens, algumas das quais se referem aos defeitos dos modelos originais de que a propositura mista do PEL é resultante.
- É complexo
Trata-se de umsistema misto de voto, que obriga o eleitor a votar duas vezes, em dois turnos, e em partidos e nomes.
Os idealizadores do mecanismo o apresentam como “proporcional misto”. Os contornos do modelo, todavia, o enquadram melhor como uma espécie de modelo proporcional delista fechada flexível (os eleitores podem modificar a posição dos nomes na lista), com a desnecessária complicação de dois turnos.
Ao denominar o modelo de proporcional misto os signatários do PEL quiseram certamente evitar a crítica de estarem apresentando uma sugestão de lista pré-ordenada, defendida renhidamente pelo PT, de grande rejeição, o que dificultaria sua aceitação popular e, certamente, o trâmite e aprovação no Congresso Nacional:
“O que nós percebemos ao conversar com diferentes partidos é que nenhum sistema de votação, puro como nós chamamos, seja ele o distritão puro, seja o sistema de lista fechada pura ou o distrital puro, nenhum destes fazem maioria para poder ser votado aqui na Câmara e no Senado”. Deputado Henrique Fontana (PT-RS), relator do projeto de reforma política na Câmara Federal. Portal do PT, 11/07/2011.
A preocupação com uma eventual maior aceitação da modelagem mista é justificada também dentro do PEL:
“A proposta de voto transparente [como é também denominada a sugestão do sistema de voto do PEL (adendo nosso, MCR)] agrega, de modo simples e coerente, elementos do sistema proporcional de lista fechada e do sistema majoritário. Por isso, ainda que não seja a primeira opção dos que defendem um ou outro modelo, tem a vocação para prover as bases para o consenso em torno não do que é ideal, mas do que é possível”. [Claudio Pereira de Souza Neto, secretário–geral da OAB, Portal da OAB, em 25/11/2014].
A nova proposta mantém as complexidades características dos sistemas proporcionais e ainda as aprofunda com seu caráter misto e o rito de dois turnos.
O modelo apresentado carece, portanto, do atributo desejável da simplicidade (inteligibilidade), que é um dos principais pré-requisitos que os sistemas de voto devam ter, até mesmo para permitir sua compreensão popular e estimular a participação do eleitor no processo de votação.
- Reduz a liberdade de escolha do eleitor
A composição da lista de candidatos no primeiro turno é da exclusiva alçada dos partidos. Por mais participativo que seja o processo interno de eleições primárias, as listas pré-ordenadas, ao fim e ao cabo, seguem a seqüência imposta pela vontade da cúpula partidária. Nesta fase, portanto, a influência do eleitor é praticamente nula.
Assim, a prerrogativa que é concedida ao eleitor de votar em candidatos de sua escolha no segundo turno propicia-lhe apenas liberdade parcial, já que os candidatos foram definidos e ordenados sequencialmente pelos partidos no primeiro turno.
Não raro poderá acontecer de entre os candidatos submetidos ao crivo do eleitor na segunda etapa não haver ninguém de sua preferência, seja porque seu candidato não estava na lista original confeccionada pelo partido, seja porque mesmo estando pré-ordenado na lista, não passou para o segundo turno por conta de restrições numéricas.
Atente-se para um exemplo in extremis: os partidos podem apresentar, no máximo, o dobro de candidatos em relação às vagas em disputa (art. 5º, &2º, do projeto de lei do PEL). Admita-se que um partido, por conveniência estratégica, concorra com apenas quatro candidatos, número bem abaixo das vagas de determinado Legislativo.
Considere-se que na apuração final do pleito no primeiro turno o hipotético partido conquiste quatro vagas. O partido iria assim para o segundo escrutínio com apenas quatro candidatos já carimbados como eleitos na primeira etapa.
Aí se estaria no clássico sistema de lista fechada e a liberdade de escolha do eleitor não existiria, nem de forma parcial.
O mecanismo do PEL infringe, mais uma vez, um dos atributos desejáveis para os sistemas eleitorais: o poder de escolha do eleitor.
3) É incompatível com o fortalecimento dos partidos e não evita sua fragmentação
Louvada pelos seus proponentes como um sistema que fortalece os partidos a modelagem do PEL é totalmente incoerente neste aspecto: propõe lista pré-ordenada para fortalecer os partidos e, ao mesmo tempo, abre espaços para coligações proporcionais, mecanismo responsável pelas maiores distorções do modelo de lista aberta.
De fato, na sistemática do atual modelo de lista aberta os partidos abrigados em alianças podem, por exemplo, eleger representantes sem lograr atingir o quociente eleitoral. Numa configuração sem coligações, somente partidos que ultrapassam o referido quociente ascendem ao Parlamento.
O corolário dessa restrição é cristalino: partidos de pouca expressão numérico-eleitoral tendem a desaparecer, pois sua principal moeda de troca – tempo de TV, aluguel de sigla e cauda eleitoral – não terá mais valor no lucrativo mercado das eleições.
Para sobreviverem, os partidos, nessa situação, incluindo os “ideológicos”, serão compelidos a fundir-se, diminuindo o número de siglas partidárias. Isso não ocorrerá no projeto do PEL, posto que a propositura não contempla o fim das coligações.
Enfim, a coexistência de lista fechada com coligações proporcionais é absolutamente incompatível, se o propósito é fortalecer o quadro partidário.
Como é que se quer fortalecer os partidos e, ao mesmo tempo, estimula-se que siglas sem a menor identidade programática se unam, por exemplo, meramente para ultrapassar o quociente eleitoral?
Na defesa do “voto transparente”, o secretário-geral da OAB assim se posicionou:
“Neste breve texto, examina-se uma grave incongruência de nosso sistema: a opacidade decorrente da transferência de votos na eleição para deputados. O voto dado a um candidato serve para eleger candidatos que, muitas vezes, o eleitor sequer conhece. O problema se agrava com a transferência de votos no âmbito mais amplo das coligações partidárias – de acordo com as regras atuais, o voto dado ao candidato de um partido pode servir para eleger candidatos dos demais partidos coligados, os quais, não raro, professam ideias e valores antagônicos”. [Claudio Pereira de Souza Neto, Portal da OAB, em 25/11/2014].
Em outro trecho mais à frente, o dirigente classista é mais explícito sobre as coligações, ainda no contexto crítico da ocorrência de transferência de votos existente hoje no sistema brasileiro de lista aberta:
“Como as coligações partidárias no Brasil são muitas vezes incoerentes, não é incomum que candidatos com valores absolutamente antagônicos se reúnam sob a mesma coligação, e que os votos dados para eleger um sirvam para eleger o outro”. [Idem, ibidem]
Note-se a contradição: os componentes do PEL taxam o mecanismo de coligações partidárias proporcionais como incoerente, o que é de fato, mas, paradoxalmente, o adotam, na nova configuração de voto proposta, tal e qual prevalece hoje no mecanismo vigente.
E mais: o sistema eleitoral sugerido pelo PEL não impede que a tão criticada transferência de votos do sistema de lista aberta atual ocorra. De fato, acompanhe-se o exemplo abaixo, elaborado no contexto da propositura de voto do PEL:
Demonstração
Considere-se uma jurisdição eleitoral cujo Parlamento tenha 10 vagas e uma eleição em que haja uma coligação de dois partidos A e B.
Primeiro turno (os eleitores só votam nos partidos ou nas coligações)
Imagine-se que a coligação apresente o total máximo permitido de 20 candidatos (cada partido ou coligação pode apresentar até o dobro de candidatos em relação às vagas legislativas).
Realizado o pleito em sua primeira etapa, suponha-se que a coligação obtenha 5 vagas das 10 em disputa..
Segundo turno (os eleitores votam em candidatos)
Admita-se que no segundo turno a coligação apresente 10 candidatos (cada partido ou coligação pode apresentar até o dobro de candidatos em relação às vagas conquistadas no turno precedente, obedecida a ordem decrescente dos nomes nas listas).
Suponha-se que a ordem na lista da coligação foi estabelecida pelos partidos da aliança no primeiro turno na seguinte seqüência:
a1,b1, a2, b2, … , a10,b10
Dessa forma, têm-se os 20 postulantes da coligação que serão reduzidos a 10 agora no segundo turno, pois a aliança só conquistou 5 vagas:
a1,b1, a2, b2, … , a5,b5
Resultado da eleição
Realizado o pleito em segundo turno, imagine-se que a ordem geral decrescente desses 10 mais votados da coligação tenha sido (há várias maneiras de apresentar este exemplo, em termos de ordem de votação recebida):
b1,b2, b3, b4, b5, a1, a2,a3, a4,a5
Note-se que todas as 5 vagas ganhas pela coligação no primeiro turno serão preenchidas pelos candidatos do partido B.
Os eleitores de A foram ao pleito no primeiro turno, votaram na coligação da qual A faz parte, e o fizeram na expectativa de que a coligação ganhasse determinado número de vagas que contemplasse A, foram para o segundo turno para votar nos seus preferidos abrigados em A, votaram neles e, no entanto, nenhum deles se elegeu.
Trata-se de transferência de votos: o eleitor de A votou na coligação para dar vagas a candidatos de A. O voto do eleitor, contudo, só serviu para eleger postulantes de B, que podem ter “valores absolutamente antagônicos” aos de A.
Na 2ª edição da Cartilha que explica o PEL tenta-se justificar a permanência das coligações no novo modelo sob a argumentação de que sua extinção afetaria o pluralismo democrático e a representação política de setores minoritários. Veja-se este trecho à página 27 do documento:
“Diante da dificuldade que setores conservadores enfrentam em impor o sistema distrital puro ou misto, já que isto implicaria reforma da Constituição, eles se voltam para aniquilar as minorias através da proibição da coligação proporcional”… “A proposta da Coalizão no lugar de extinguir as coligações, as aperfeiçoa ao estabelecer que a coligação somente seja possível com base em programas políticos convergentes. Tem, todavia, a cautela ao proibir que a coligação se forme tão somente com o interesse em aumentar o tempo do horário eleitoral gratuito”.
Eventuais limitações de acesso a tempo de TV ou a recursos do Fundo Partidário para partidos sem representação parlamentar apenas minimizam o problema, não evitam a inconsistência das alianças, nem acabam com o mercado de siglas.
A Cartilha também não explica como será feito para que “a coligação somente seja possível com base em programas políticos convergentes”. Não raro tem-se coligação com 10 partidos e como é que se assegura que eles tenham “programas políticos convergentes”?
É notória a dificuldade de justificar como a incorporação das coligações proporcionais ao modelo do PEL fortalece o quadro partidário.
4) Não evita que candidatos menos votados que outros sejam eleitos
Embora a proposta do PEL tenha o componente majoritário no segundo turno, fato que é alardeado pela Coalizão com garantidor de que os mais votados serão eleitos, sua estrutura conceptiva não impede de candidatos mais votados ficarem fora do Parlamento.
Com efeito, na variante do PEL os partidos apresentam a julgamento do eleitor, no segundo turno, o dobro de candidaturas relativamente ao número de vagas conquistadas no turno anterior.
Pode ocorrer, por exemplo, de todos os candidatos de um determinado partido terem sido os menos votados do pleito e, ainda assim, o partido preencherá as vagas que lhe pertencem, conquistadas no primeiro turno, deixando de fora candidatos mais votados de outros partidos.
Sob este aspecto, a sugestão do PEL incorre no mesmo problema de todos os modelos proporcionais, nos quais os mais votados dos partidos ou coligações é que são eleitos e que não necessariamente são os mais votados do pleito. A variante majoritária da proposta do PEL não evita tal fenômeno, conforme se mostra a seguir:
Demonstração
Considere-se uma jurisdição eleitoral cujo Parlamento tenha 10 vagas e uma eleição em que se apresentam três partidos A, B e C.
Primeiro turno (os eleitores só votam nos partidos)
Imagine-se que os partidos apresentem 20 candidatos cada um, num total máximo permitido de 60.
Realizado o pleito em sua primeira etapa, suponha-se que o partido A obtenha 5 vagas, o partido B conquiste 3 vagas e o partido C fique com 2 vagas, totalizando as 10 vagas disponíveis.
Segundo turno (os eleitores votam em candidatos)
Admita-se que no segundo turno o partido A apresenta 10 candidatos, o partido B comparece com 6 e o partido C com 4, todos eles preenchendo seus limites máximos de candidatos .
Dessa forma, têm-se os 20 postulantes dos 3 partidos:
a1,a2,…, a10 são os 10 candidatos do partido A (que tem direito a 5 vagas);
b1,b2,…, b6 são os 6 candidatos do partido B (que tem direito a 3 vagas);
c1, c2,c3e c4 são os 4 candidatos do partido C (que tem direito a 2 vagas);
Resultado da eleição
Realizado o pleito em segundo turno, imagine-se que a ordem geral decrescente desses 20 mais votados do pleito tenha sido esta abaixo (há várias maneiras de apresentar este exemplo, em termos de ordem de votação recebida):
c1, c2,c3, c4,b1,b2, b3, b4, b5, b6, a1,a2,…, a10
Note-se que, embora todos os candidatos do partido A tenham sido os menos votados do pleito, ainda assim, o partido preencherá as 5 vagas que lhe pertencem, conquistadas no primeiro turno (candidatos eleitos de A: a1,a2,a3,a4 e a5).
Essas 5 vagas serão ocupadas no lugar de 2 vagas do partido C (quer dizer, no lugar dos candidatos mais votados c3e c4) e 3 do partido B (no lugar dos candidatos mais votados b4, b5e b6). Então, ficarão fora do Parlamento candidatos mais votados em detrimento de outros menos votados.
Sob este aspecto, portanto, a proposta do PEL não difere do modelo proporcional de lista aberta em vigor no Brasil: os candidatos mais votados do pleito não são necessariamente os eleitos.
5) Tende a aumentar drasticamente a alienação eleitoral no segundo turno.
Definidas as vagas partidárias na primeira fase do pleito, os eleitores de partidos e candidatos que não serão votados no segundo turno perdem completamente o estímulo de comparecer às urnas nesta etapa e, se o fizerem, muito provavelmente o farão para manifestar indiferença (votar em branco) ou para protestar (anular o voto).
Mesmo alguns dos eleitores de partidos que ultrapassaram o quociente eleitoral no primeiro turno podem não se sentir incentivados a votar na etapa posterior: o jogo já foi jogado, os partidos já garantiram vaga. O eleitor pode, por exemplo, sentir-se contemplado com qualquer um dos candidatos do partido.
Assim, na sugerida sistemática de eleição em doisturnos, tende a haver extraordinário aumento da abstenção e dos votos em brancos e nulos, podendo levar os índices de alienação eleitoral às alturas.
6) Não evita o transbordamento (spill over) de votos do “puxador de votos”
Um dos parceiros do PEL nessa proposta de mudança de sistema de voto, o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), deu a seguinte justificativa no lançamento do Projeto:
“De acordo com o MCCE, a mudança na forma de eleição dos parlamentares visa tornar a eleição mais representativa e evitar que um único candidato seja responsável pelas eleições de vários outros, como aconteceu nas eleições passadas quando o palhaço Tiririca, concorrendo pelo PR-SP, elegeu quatro parlamentares ao ter cerca de um milhão e trezentos mil votos”. Jornal do Brasil, 24/06/2013.
Na mesma linha se postou o presidente nacional da OAB, em entrevista ao jornal Brasil Econômico, em edição de 1/07/2013:
“Da forma que temos o sistema proporcional hoje, o cidadão que vota no Tiririca elege também três, quatro, cinco outros candidatos nos quais o cidadão não quis votar. É preciso criar um sistema que acabe com esse tipo de efeito. Não vai aqui qualquer crítica ao deputado federal Tiririca, que foi eleito legitimamente. O exemplo serve apenas para simbolizar que o povo votou nele e elegeu outros tantos que não sabia que estava elegendo. O que existe hoje é uma relação obscura, não é algo transparente. Por isso que nós chamamos nossa proposta de voto transparente”.
A entidade e o presidente estão equivocados: a mudança proposta no PEL não evita o transbordamento de votos do puxador para candidatos do partido ou coligação.
Na nova modelagem do PEL, independente da votação de candidatos de outros partidos, determinada sigla fica com as vagas ganhas no primeiro turno. No preenchimento dessas vagas pode aparecer um campeão de votos e arrastar consigo candidatos com votações ínfimas, tal e qual acontece hoje no modelo de lista aberta.
Veja-se um breve exemplo, já na estrutura do sistema eleitoral do PEL:
Demonstração
Admita-se uma situação em que um partido D tenha um puxador de votos e que este partido tenha direito a 6 vagas no Legislativo, ganhas no primeiro turno. Na votação do segundo turno o partido D se apresenta com 12 candidatos, sendo que os 6 mais votados do partido são:
d1= 1.573.642 votos
d2= 18.421 votos; d3 = 673; d4 =484; d5 = 382 e d6= 275 votos.
Independente da votação de candidatos de outros partidos, o partido D ficaria com as 6 vagas conquistadas no primeiro turno, sendo que 5 delas seriam preenchidas por candidatos de votações ínfimas.
Este exemplo nada mais é do que o do famoso caso de Enéas Carneiro, em 2002, perfeitamente absorvido pelo mecanismo do PEL.
Portanto, a propositura do PEL neste item é inconsistente e a afirmação de que o modelo alternativo de dois turnos vai “evitar que um único candidato seja responsável pelas eleições de vários outros”não encontra respaldo na evidência empírica.
7) Diminui o vínculo entre o eleitor e o parlamentar
A característica dos sistemas de lista fechada (flexível ou não) é a de que os parlamentares se reportam muito mais aos partidos e à cúpula dirigente (pois dependem crucialmente deles para entrar e se posicionar bem na lista pré-ordenada) do que aos eleitores.
Esse distanciamento, por seu turno, provoca a contrapartida de certo alheamento do eleitor às atividades parlamentares do representante, que exerce seu mister sem interação com o representado (quer dizer, há uma baixa accountability).
O fato de a proposta do PEL ser em dois turnos, com a liberdade parcial do eleitor de escolher candidatos entre os que são apresentados pelos partidos, não invalida a crítica. O modelo majoritário-parcial concebido na segunda etapa do mecanismo do PEL é diferente do distrital puro, onde, aí sim, há mais interação entre eleitor e parlamentar.
De novo, o modelo do PEL não atende a um dos requisitos fundamentais dos sistemas de voto: o de propiciar interação entre o parlamentar e suas bases.
8) Há grande luta pelo poder dentro do partido, oligarquização, e pouca renovação de quadros.
Esta é uma característica típica dos modelos de lista fechada. A cúpula partidária é quem decide sobre os nomes da lista, o que enseja briga intestina pelos postos de comando. Em geral, os caciques se perpetuam no poder e, é claro, nas listas partidárias, cuja taxa de renovação é geralmente baixa.
A variante majoritária impressa ao modelo do PEL não lhe tira a carimbo de ser de lista fechada, embora flexível. Ademais, dependendo de certa configuração eleitoral no processo de operacionalização do mecanismo do PEL, a proposta se transforma em sistema de lista fechada bloqueada (o eleitor não interfere na lista partidária), conforme se exemplificou mais acima.
Na Cartilha do PEL refuta-se a crítica de que a cúpula partidária é a instância decisória da lista. In verbis (pag. 18):
“Os críticos deste sistema argumentam que a lista será elaborada pelos “caciques“ dos partidos. …Na alternativa proposta para evitar isto, a elaboração da lista partidária de candidatos deverá ser realizada em eleições primárias, com a participação de todos os filiados e com acompanhamento da Justiça Eleitoral e do Ministério Público. Ou seja a elaboração da lista não será feita pelos “caciques” partidários e sim em votação democrática pelo conjunto da militância”.
Primeiro, os militantes são uma fração absolutamente ínfima dos eleitores. Portanto, não se pode dizer que os eleitores participam do processo de elaboração da lista.
Segundo, os militantes também não o fazem, quer dizer, não têm interferência na lista, visto que quem participa do cotidiano partidário sabe que o grosso da militância segue líderes da agremiação e vota consoante expressa orientação destes.
As prévias, que tornam o processo supostamente mais democrático, não impedem o caráter autoritário de elaboração da lista e de sua ordenação.
9) Mantém o problema da desproporcionalidade intracoligações.
Nos pleitos eleitorais para deputado e vereador o princípio ideal da proporcionalidade é aquele segundo o qual o número de cadeiras conquistado pelos partidos concorrentes deve ser o mais possível proporcional aos votos recebidos.
Esse é o alicerce do sistema proporcional, tanto o de lista aberta quanto o de lista fechada.
Na atual configuração do sistema eleitoral brasileiro, no contexto legal e operacional em que as coligações são permitidas, o princípio da proporcionalidade não é observado, como o é em alguns países.
Constata-se, na verdade, pela evidência empírica das eleições, uma nítida alteração da vontade do eleitor expressa nas urnas: a ocupação das vagas parlamentares pelos partidos no interior das coligações não é feita em consonância com a proporção dos votos por eles recebida.
Quer dizer, se dois partidos, A e B, celebraram aliança, tendo A 70% dos votos e B 30%, então o princípio da proporcionalidade reza que, se a aliança conquistou 10 cadeiras, A deveria ficar com 7 e B com 3. Na sistemática brasileira, pode ocorrer o inverso, ou qualquer combinação de assentos entre A e B.
O que é determinante no interior das alianças, de fato, é o somatório de votos individuais e de legenda, e não a contribuição proporcional dos votos de cada agremiação componente.
Os candidatos que receberem mais votos no interior da aliança são os eleitos, independentemente de que partido são egressos. É como se as agremiações desaparecessem no interior da coligação e, para efeito de cálculo de quem vai eleger-se, ela própria, a coligação, passe a funcionar como se um partido fora, uma vez que a votação é unificada internamente.
Obviamente, essa distorção afeta a vontade do eleitor e impacta negativamente na credibilidade do sistema, contribuindo para aumentar seu desgaste.
O PEL, que se apresenta como uma alternativa de aperfeiçoamento ao modelo vigente, não modifica essa sistemática, pois abraça as coligações proporcionais sem lhes alterar a essência.
O país como laboratório de experimentação de sistemas eleitorais
A dificuldade de abrigar consensos entre os partidos quanto à escolha de um sistema de voto que pudesse ser aprovado no Legislativo Federal fez com que os parlamentares se enveredassem numa teia de invencionices.
A idéia fixa que pautou as proposituras de suas excelências foi experimentar um novo sistema eleitoral, tendo o país como laboratório. Nunca, em nenhum momento, uma voz se alevantou no Congresso Nacional defendendo a simples revisão e depuração do modelo brasileiro, em vigor desde 1945.
O foco foi sempre o de importar um mecanismo qualquer, na sua concepção original ou moldado consoante um formato que resultasse diferente da modalidade lista aberta atual.
A cúpula do PMDB, por exemplo, trouxe à tona do debate uma variante magnificada do sistema distrital puro, em que a circunscrição eleitoral seria um grande distrito (estado, município), o chamado “distritão”.
Como não teve receptividade, o partido sugeriu em seguida um modelo híbrido: o eleitor votaria duas vezes, uma, na lista pré-ordenada pelos partidos e, outra, no candidato de sua preferência. Seria um “distritão misto”, uma cópia ampliada do sistema distrital misto, como o adotado na Alemanha e em alguns países.
A criatividade não para por aí. O relator da reforma na Câmara, deputado Henrique Fontana (PT/RS), intentou superar as adversidades no Congresso quanto à aceitação do modelo de lista fechada, bandeira do seu partido, mediante a adoção de um sistema que ele chamou de “proporcional misto”: combinação do sistema de lista aberta com o modelo de lista fechada. A sugestão não teve a mínima aderência parlamentar.
Convencido da inviabilidade de sua proposta o relator resolveu adotar outro mecanismo, mais flexível, embora ainda no âmbito dos sistemas proporcionais mistos. Dessa feita, absorveu uma criativa sugestão do cientista político Jairo Nicolau, em que “o eleitor, caso concorde com a lista, vota na legenda, caso queira privilegiar um nome específico, pode votar neste nome”.
Embora engenhosa, a proposta não prosperou, entre outras razões por que pressupõe o fim das coligações proporcionais e é de complexo entendimento e operacionalização.
O próprio modelo do PEL, proporcional misto em dois turnos (ou lista fechada flexível em dois turnos), discutido neste texto, também esteve sendo apreciado na Casa congressual, sem avanços, contudo.
O Grupo de Trabalho coordenado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT/SP) sugeriu a adoção de um mecanismo parecido com o do PEL, consubstanciado na PEC 352/13, já em discussão final no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara Federal.
O modelo sugerido permaneceria nos contornos do sistema proporcional de lista aberta, mas os estados e municípios teriam circunscrições menores, com 4 a 7 lugares no Parlamento Federal. Não houve receptividade à iniciativa.
Também desfilaram entre os mecanismos debatidos os originais famosos: distrital puro, distrital misto e o de lista fechada bloqueada, bem como algumas variantes dos diversos modelos majoritários e proporcionais. Nem os formatos originais, nem as suas inventivas variantes prosperam no Congresso.
O diagrama abaixo mostra as diversas modalidades de sistemas eleitorais debatidos na legislatura 2011-2014 do Congresso Nacional, ensejando imaginar-se quanta energia não foi gasta na confecção e discussão de tais propostas.
Como se vê são inúmeras as tentativas de importar experiências de realidades histórico-culturais próprias de outros países, como se a simples substituição do atual modelo proporcional de lista aberta por qualquer outro acabasse com as mazelas existentes e redundasse em grande melhoria qualitativa do sistema político-eleitoral.
Em um mapeamento internacional de atributos desejáveis dos sistemas eleitorais majoritário e proporcional (apresentado por Jairo Nicolau, em palestra sobre reforma política), tais como: (a) simplicidade; (b) proporcionalidade; (c) poder de escolha do eleitor; (d) partidos coesos; (e) grau de ligação do parlamentar com suas bases, alguns atributos são satisfeitos por uns sistemas e não por outros, e nenhum sistema satisfaz a todos os atributos.
Então, os sistemas eleitorais se nivelam no que dizem respeito aos seus requisitos essenciais, de sorte que é inapropriado falar-se de superioridade de um sistema sobre outro. Cada qual tem seus méritos e deméritos, vantagens e desvantagens.
Aliás, tem-se já assentado na literatura especializada,em linguagem livre, que “nenhum sistema de voto é justo, perfeito, ideal”, constatação que foi demonstrada pelo Prêmio Nobel de Economia, Kenneth Arrow, em 1951, e que ficou conhecida como o “Teorema de Arrow” ou “Teorema da Impossibilidade de Arrow”.
Ora, se todos os sistemas eleitorais têm vantagens e desvantagens, migrar de um sistema para outro envolve ganhos e perdas.
Há ganhos quando o país absorve as vantagens do sistema que intenta adotar e se livra das desvantagens do que está abandonando; e há perdas quando o país se desfaz das vantagens do sistema que pretende abandonar e incorpora as desvantagens do que está absorvendo.
Ademais, se não houver depuração dos vícios e deformações que circundam o atual sistema político-partidário-eleitoral brasileiro (compra de votos, cauda eleitoral, siglas de aluguel, puxador de votos, prevalência do poder econômico, fragilização partidária, caixa 2, etc.), um novo modelo importado, qualquer que fosse ele, já nasceria inexoravelmente contaminado.
Considerações finais
Não cabem dúvidas sobre os elevados propósitos das entidades que apoiam o PEL: contribuir para o aperfeiçoamento do sistema político-eleitoral do país, submetendo importantes sugestões à analise da sociedade e do Congresso Nacional.
Infelizmente, a modalidade de sistema de voto encaminhada para substituir o modelo brasileiro em uso é eivada de incoerências e deformações enão apresenta nenhuma grande vantagem que justifique implantá-la no país.
O que temos defendido, ao invés de se adotar tais experiências alheias, como sugere agora o PEL, é o aperfeiçoamento do modelo proporcional vigente, introduzindo mudanças que lhe imprimem substanciais melhorias qualitativas.
Muito melhor fariam as respeitadas entidades que subscrevem o PEL jogar o peso de seu prestígio no aperfeiçoamento do modelo atual de lista aberta, apoiando mudanças importantes que eventualmente tenham sido sugeridas*, sem prejuízo, naturalmente, de contribuir com outras alterações que lhe imprimam adicionais avanços qualitativos.
Uma propositura de aperfeiçoamento no sistema vigente, lipoaspirando-o de suas distorções mais gritantes, teria maior chance de ser aceita pelos parlamentares federais e tramitar com boas expectativas de aprovação. Ademais, estaria consubstanciada em preceitos pragmáticos, conforme aconselha o renomado cientista político Leôncio Martins:
“Certamente, tem muitos defeitos [o sistema proporcional brasileiro (adendo nosso, MCR)]. Mas está na hora de entendermos que não existem sistemas políticos perfeitos. Poderíamos obter melhor resultados se deixarmos de perder tempo com a miragem de grandes reformas e tentarmos medidas corretivas de mais fácil aplicação”. Leôncio Martins, in “Reforma política, de novo!”, O Estado de S.Paulo, 14/07/2013.
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Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia, é consultor da Contexto Estratégias Política e Institucional, e do Instituto de Pesquisa Maurício de Nassau. mauricio-romao@uol.com.br, https://mauricioromao.blog.br.
* “Eleições de deputados e vereadores: compreendendo o sistema em uso no Brasil”, Editora Juruá, 2012.
* “Três propostas de aperfeiçoamento do sistema brasileiro de eleições proporcionais”. Trabalho apresentado no VI Congresso Latino-Americano de Ciência Política, organizado pela Associação Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP). Quito, 12 a 14 de junho de 2012.
Muito bom, parabéns pelas suas considerações!