Editorial do Jornal do Commercio (PE), em 25.03.2011
Costuma-se dizer que decisão judicial não se discute, cumpre-se. No caso da Lei da Ficha Limpa, porém, fica um grande espaço para discussão, por vários motivos. Um deles é numérico, o placar do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da validade, ou não, da lei para as eleições de 2010. Seis votos pela não validade, contra cinco pela validade, não caracterizam um princípio jurídico sólido, mas o exercício de opiniões. Quem acompanhou a votação pela TV do Judiciário ouviu vigorosos argumentos, de um lado e de outro, num magnífico exercício de hermenêutica – ciência de interpretação de textos –, sem o rigor das ciências exatas.
Assim, não se pode tirar dessa decisão do STF nenhuma conclusão apressada nem deve haver o desespero que tomou as multidões com a recusa das Diretas Já. Mas é importante, sim, que persista a indignação da sociedade, manifestada através de entidades que representam todos os segmentos do povo brasileiro, inclusive da magistratura, posto que uma das vozes que mais condenaram a presença dos políticos com fichas sujas no poder foi a Associação dos Magistrados Brasileiros, com o eco de entidades estaduais e das mais intransigentes fiscalizadoras da probidade administrativa, como a Associação dos Juízes para a Democracia.
Ficou acertado, com a decisão de parte dos ministros do Supremo, que honestidade na política só a partir de 2012. Não é o fim do mundo, como se costuma dizer quando se procura atenuar golpes que incomodam e ferem. Mas ficam no ar perguntas que poderão ser remetidas, no futuro próximo, aos mesmos magistrados. Por exemplo: Nas eleições municipais de 2012 todos os candidatos e todas as candidatas estarão com fichas limpas? Valerá a sujeira anterior às eleições de 2010, ou a que foi constatada entre uma e outra eleição? Essas são possibilidades que podem levar a novos exercícios de hermenêutica e aí é que mora o perigo quando se trata de avaliar o caráter brasileiro, pois alimenta a fama que temos de uma sociedade com muita corrupção no poder.
Por isso é justo e compreensível que a decisão do STF tenha das pessoas comuns, não togadas, o mesmo tratamento que teve entre os ministros: o direito de ser contra ou a favor. Deve prevalecer, contudo, a certeza de que nenhum dos membros do Supremo Tribunal Federal admite a corrupção no poder. O que ali houve foi a liturgia do entendimento de uma questão, muito diferente da forma com que o povo a vê e interpreta. Abstraídas as firulas jurídicas, é mais do que certo que não pode existir na consciência de um magistrado a aprovação à desonestidade como prática de poder.
A condenação ampla, geral e irrestrita de todo e qualquer político desonesto deve ser a perspectiva para já e não apenas para tal ou qual eleição. Porque o que incomoda à nacionalidade é a tolerância, expressões inaceitáveis como “rouba mas faz”, é constatar que somos vistos lá fora – a partir da avaliação de momentos como foi a discussão e aprovação da Lei da Ficha Limpa e agora –, como um Estado em que a corrupção está enraizada no poder.
Assim, entendemos que é fundamental ver a decisão do STF como um capítulo em um processo de depuração que começou com a mobilização da sociedade e a transformação de sua vontade em um projeto de lei. Essa é a mais poderosa expressão de uma democracia. O povo que foi capaz de dizer a seus representantes no Congresso o que deveriam legislar em matéria de probidade administrativa, sobre incapacidade eleitoral, pode e deve ser capaz de instituir uma nova pedagogia: a da decência no exercício do poder. Uma pedagogia que deve começar no ensino fundamental. Quando a cultura da ficha limpa chegar a nossas escolas como disciplina obrigatória, bastará o percurso de uma geração para se depurar o caráter brasileiro de expressões como aquela do “rouba mas faz”. Só então teremos como uma cultura nacional a capacidade de ver o dirigente público que rouba em função do cargo com o mesmo desprezo e o mesmo rigor jurídico com que vemos hoje o assaltante que mata para roubar.