A VOTAÇÃO NO SISTEMA DE LISTAS (Parte I)

Roberto Amaral

Dentre as muitas características dos regimes democráticos, uma é inafastável: sua raiz na soberania popular. Dessa origem decorrem tanto a  legitimidade quanto a legalidade do poder, cujo exercício é regulado por um ordenamento jurídico em cujo topo se encontra  a Constituição. A soberania popular, por seu turno, nas democracias representativas, como a brasileira, se exerce mediante o voto (ou sufrágio), direito do cidadão. No Brasil o cidadão vota quando elege seus representantes (aqueles que vão elaborar as leis ou governar), e quando aprova ou rejeita leis ou responde a consultas.

Nas democracias diretas, o poder era exercido direta e imediatamente pelo povo. Seu berço foi as cidades-

Estado gregas, destacadamente Atenas. Essa experiência finda com a antiguidade clássica. A forma moderna de democracia é a representativa ou indireta. Nela, o poder é exercido por mandatários da vontade coletiva, ou seja, por representantes do povo, escolhidos mediante eleições, isto é, pelo voto popular. Essas democracias representativas tendem, contemporaneamente, a transitar para modelos simidiretos. Identificamos como democracias mistas ou semidiretas aquelas que procuram harmonizar princípios da democracia indireta (como a delegação), com  dispositivos típicos das democracias diretas. Dentre esses dispositivos absorvidos pela democracia representativa contemporânea, estão o referendo, o plebiscito, a iniciativa legislativa popular, a revogação de mandatos (também conhecida como recall) e o veto.

Por conhecer institutos como o referendo, o plebiscito e a iniciativa, podemos dizer que  nosso modelo se aproxima das experiências da democracia simidireta, ou mista, nada obstante conserve todos os instrumentos da representação. Pode-se mesmo dizer  que o direito constitucional contemporâneo tende à adoção das modernas conquistas dos princípios progressistas da doutrina da soberania popular.

 Afirma nossa Constituição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Art. 1º, parágrafo único). Segundo o texto que acabamos de ler, o exercício da soberania popular se dá de duas maneiras: a) quando o poder é exercido por representante do povo e b) quando o próprio povo intervém com sua palavra final. Na primeira hipótese, vimos já, o poder é delegado, pelo povo, a cidadãos por ele eleitos para em seu nome exercerem funções legislativas ou administrativas. É quando o cidadão vota para eleger seu representante. Mas o cidadão também vota para confirmar uma lei ou uma medida governamental (referendo) e vota para responder a uma consulta (plebiscito). É a hipótese b. Logo após a promulgação da Constituição de 1988 fomos chamados a definir a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar entre nós.  Essa consulta denominou-se plebiscito. Recentemente o povo foi convocado às urnas para dizer se aprovava ou  não a vigência de dispositivo da lei do desarmamento, que proibia a comercialização e posse de armas de fogo. Tratava-se de um referendo.

Nas democracias de índole participativa (denominação que tende a firmar-se sobre democracia direta), cujo melhor exemplo contemporâneo é a atual constituição venezuelana, o cidadão é chamado, através do voto, a exercer diretamente o poder, sem quebra dos mecanismos da representação.

A constituição venezuelana de 30 de dezembro de 1999, reafirmando, como todas as constituições democráticas, como a brasileira de 1988, que todo o poder emana do povo (diz “a soberania reside intransferivelmente no povo”) inverte a ordem do exercício do poder: primeiramente, o poder é exercido pelo povo, diretamente, e indiretamente, mediante o sufrágio, pelos órgãos do poder público (Art.5º).

Seja nas democracias representativas, seja nas democracias mais ou menos participativas, como a suíça e a venezuelana, seja em democracias representativas que admitem, como a brasileira, o referendo, o plebiscito e a iniciativa legislativa popular, a legitimidade do poder decorre do exercício do voto pelo povo, o titular insubstituível da soberania. Porque, quando elege o seu representante, não está o cidadão renunciando à sua soberania, mas nomeando um delegado para, em seu nome, e consoante o mandato que lhe é atribuído, exercer o poder. Tanto os parlamentares quanto os titulares de cargos executivos eletivos são representantes do povo, em nome de quem exercem os respectivos mandatos.

 Na democracia representativa

 Vimos até aqui que nas  democracias representativas o poder, sempre  derivado da soberania popular, não é exercido diretamente pelo cidadão, mas  por representantes seus, portanto, indiretamente. Esses representantes são sempre eleitos segundo normas que constituem o chamado sistema eleitoral, variante de país a país. Por intermédio das eleições, periódicas, o povo se manifesta. Em síntese, o poder que emana do povo é constituído pelo voto, dado em eleições livres e legítimas, realizadas nos termos da legislação específica, regras previamente definidas, que estabelecem o processo eleitoral, a distribuição dos cargos em disputa etc. No Brasil o sistema eleitoral é fundamentalmente regulado pela Constituição federal, pelo Código eleitoral, pela Lei dos Partidos políticos, pela Lei de Inelegibilidade e pela Lei eleitoral e por uma vasta gama de dispositivos legais correlatos. Além das Resoluções do TSE, editadas a cada pleito, as quais, porém,  devendo simplesmente nortear a aplicação dos dispositivos legais, terminam por constituir ação legiferante, criando direito. É importante destacar, pois é exigência da ordem jurídica, que a legitimidade do pleito depende da observância de normas previamente definidas, evitando-se a mudança das regras em pleno andamento do jogo. Neste sentido constitui avanço de nosso direito o disposto no art. 16 da CF, ao afirmar que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Do voto

Na sistemática brasileira o voto ou sufrágio é universal,  direto, secreto,  obrigatório e periódico, com valor igual para todos. Estes atributos constituem cláusulas pétreas, isto é, não podem ser objeto de emenda constitucional que visem a aboli-los.

O sufrágio é o poder de que, nas democracias, dispõe o cidadão para intervir na vida pública participando da soberania. Essa intervenção, vimos já, pode ser a) direta (quando, através do voto, o cidadão decide sobre determinado assunto) e b) indireta, quando, ainda por intermédio do voto, elege seus representantes ou governantes. No primeiro caso o povo vota para decidir, ou seja, vota mas sem eleger; diz-se que houve votação.  No segundo caso vota para eleger; diz-se que houve eleição.

Voto universal é aquele em que a capacidade  de participação no pleito não sofre limitações derivadas de sexo, raça, renda, instrução ou nascimento. Mas isso não significa que todas as pessoas possam votar. O direito brasileiro prevê limitações de idade, nacionalidade e domicílio, entre outras. Não podem alistar-se como eleitores os incapazes, os estrangeiros e, durante o serviço militar obrigatório, os conscritos. O voto secreto visa a proteger a manifestação livre da vontade eleitoral, ameaçada tanto pelo poder político quanto pelo poder econômico. É um direito do eleitor. É obrigatório para os maiores de 18 anos e menores de 75 anos e facultativo para os maiores de 16 e menores de 18 anos. O sufrágio, além de universal e secreto, é também direto, no direito brasileiro, porque o eleitor elege, diretamente, isto é sem intermediação de colégios eleitorais (como, entre nós, ao tempo da ditadura militar; como, sempre, nos Estados Unidos) seus representantes, tanto para o Poder Executivo, em toda as suas instâncias,  quanto para as diversas casas legislativas.

Trataremos do voto constitutivo dos mandatos, isto é, das eleições.

Das eleições

 As eleições, no Brasil, são majoritárias para alguns cargos e proporcionais para outros, e se destinam à escolha de governantes (prefeitos, governadores e presidente da República) e legisladores (vereadores, deputados estaduais, deputados distritais, deputados federais e senadores da República).

As eleições para os Executivos são majoritárias, isto é, elege-se aquele que obtém maioria de votos. Nas eleições para Presidente da República, Governadores de Estado e prefeitos de cidades com mais de 200 mil habitantes, só se declara eleito aquele candidato que obtém maioria absoluta (metade mais um) dos votos válidos. Tal não ocorrendo, os dois candidatos mais votados disputam um segundo turno. Daí a expressão “eleição em dois turnos”. As eleições para o Senado da República são igualmente majoritárias, mas não há a exigência de maioria absoluta: elegem-se os candidatos mais bem votados. Portanto, eleições em turno único.

Nas duas hipóteses de eleições majoritárias o voto é dado no candidato e não no partido ou coligação. Não há voto de legenda. Cuidemos agora das eleições para as funções legislativas.

Em regra, há duas famílias de sistemas eleitorais para a constituição das casas legislativas: o majoritário e o proporcional. Trataremos de ambos. Comecemos pelo majoritário, adotado nos Estados Unidos, no Japão e em grande número de democracias européias. Esse sistema se caracteriza, como enuncia sua própria denominação, por assegurar a eleição de um só candidato, o mais votado. Em regra, a geografia eleitoral é dividida em áreas ou circunscrições eleitorais (que no Brasil chamamos de distritos), com as quais são atribuídas as cadeiras a serem preenchidas. A cada distrito corresponde uma vaga. Ganha-a o mais votado.

O sistema majoritário, mais conhecido na literatura política brasileira por sistema ou voto distrital, pode ser apresentado, de forma simplificada, através de dois modelos: o de maioria simples e o de dois turnos.

Vejamos um e outro.

No sistema de maioria simples a vaga é preenchida pelo candidato que obtém o maior número de votos. Cada distrito elege um vereador ou um deputado. É eleito o mais votado dentre todos. É a tradição anglicana. Assim na Grã-Bretanha (desde 1264), no Canadá, nos Estados Unidos e na Índia.

No sistema majoritário de dois turnos a única diferença sobre o modelo anterior é a exigência de que o concorrente, para ser declarado eleito, obtenha metade mais um dos votos (maioria absoluta) de seu distrito. Tal não ocorrendo, realiza-se um segundo turno, entre os dois mais votados, permitida a formação de coalizões partidárias. Assim o eleitorado de um candidato derrotado pode descarregar seus votos num dos candidatos em disputa. É o modelo francês, conhecido como ballotage.

No modelo de eleição proporcional o número de parlamentares a serem eleitos é determinado pelo número de habitantes da respectiva circunscrição, e o número de eleitos, por partido, é calculado em função do número de votos obtido por partido ou coligação de partidos. Não há distritos. A circunscrição é o Estado (para deputados estaduais e federais), o Distrito federal (para deputados distritais)  e o município (para os vereadores). Em outras palavras os deputados podem ser votados em todo o Estado e os vereadores em todo o município. São eleitos os mais votados em cada partido.

Assim: tomemos por referência a eleição de vereadores  e suponhamos que na cidade x, existem dez cadeiras por preencher (isto é, a respectiva Câmara Municipal é constituída de dez vereadores). Como saber quantos vereadores cada legenda (partido) terá elegido, e quais os eleitos em cada partido?  Simplesmente dividindo-se o número de votos válidos (digamos 100 mil) pelo número de cadeiras (100.000 dividido por 10), donde 10.000. Este é o quociente.  Cada partido elegerá tantos vereadores quantas vezes tenha feito dez mil votos. Em cada partido se elegem os mais votados, independentemente da posição que ocupem na lista de candidatos.

O Brasil optou pelo sistema de eleição proporcional, mediante listas abertas.

Trataremos inicialmente do sistema proporcional.

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