Maurício Costa Romão
Hoje já é admitido publicamente pelos próprios aderentes da federação de partidos que o mecanismo foi instituído para salvar siglas que tinham dificuldades de cumprir com as exigências da cláusula de desempenho partidário, cujos termos estabelecem regras progressivamente mais rigorosas para acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de rádio e TV (os requisitos para 2022 são 2% dos votos válidos – cerca de 2 milhões de votos – ou eleição de 11deputados).
Os mesmos aderentes confessam também que o modelo foi proposto como compensação ao fim das coligações proporcionais, mas insistem que são diferentes, já que a união de partidos federados é “estável”, durando o mínimo de quatro anos, e é de abrangência nacional, verticalizada, repetindo-se em todos os estados e municípios. As coligações, ao contrário, são efêmeras, se desfazem assim que acaba a eleição, e são celebradas independentemente em cada estado e município.
Essa diferenciação é cosmética e a argumentação que a embala não se sustenta. É como dizer que dois carros de mesma marca, modelo e ano são diferentes porque um é branco e outro cinza, e um tem teto retrátil e outro não. A máquina, no entanto, é a mesma, a diferença está nos adereços.
De fato, federação e coligação elegem seus parlamentares do mesmo jeito: somam-se os votos nominais e de legenda dos partidos federados (coligados), acha-se o quociente partidário da federação (coligação), calcula-se para a federação (coligação) o número de candidatos eleitos diretamente por este quociente e computam-se as sobras eleitorais que podem ensejar vagas adicionais para a federação (coligação). Ao final, tem-se o total de candidatos eleitos pela federação (coligação). Mais igual, impossível!
Quer dizer, na essência, federação partidária foi instituída à imagem e semelhança das coligações proporcionais, em que os adereços são um expediente de tornar o novo modelo minimamente distinto do original, caso contrário seria uma mera troca de denominações.
Há sérios problemas com o modelo da federação:
(1) desequilibra o processo eleitoral: (a) a federação tem mais chances de ultrapassar o quociente eleitoral porque sua votação é a do arranjo coligado, enquanto que partidos não federados só podem fazê-lo individualmente, com sua própria musculatura de votos; (b) candidatos de partidos federados têm mais possibilidades de se eleger com menos votos do que candidatos de partidos não federados; (c) partidos federados podem ascender ao Parlamento mesmo não atingindo o quociente eleitoral, o que é vedado aos não federados, a menos que estes tenham votação maior ou igual a 80% do quociente eleitoral e, simultaneamente, consigam estar entre as siglas que obtiveram as maiores médias na distribuição das sobras de voto;
(2) é inconstitucional: a EC 97/2017, que deu fim às coligações proporcionais, estava em pleno vigor quando a Lei 14.208/2021 criou a federação de partidos. Assim, configura-se uma situação esdrúxula: uma norma de hierarquia inferior, de forma enviesada, reinstituiu as coligações proporcionais cujo fim havia sido decretado pela Constituição…
Aliás, no texto em que o presidente da República vetou as federações de partidos (posteriormente o veto derrubado pelo Congresso Nacional) diz-se, como justificativa do veto, que as federações inauguram, ad litteram: “um novo formato com características análogas às das coligações partidárias”, hoje vetadas na Constituição para eleições proporcionais;
Também, em ação direta de inconstitucionalidade levada ao STF (ADI 7021), o PTB expressa, em síntese, que o mecanismo da federação partidária nada mais é que uma forma disfarçada de driblar as coligações, proibidas pela Constituição desde 2017.
Na lide, o partido trabalhista pontua à pagina 5, ipsis verbis:
“Assim, ao permitir, por via transversa, a celebração de coligação nas eleições proporcionais… as normas ora impugnadas violam a vedação expressamente prevista no §1º, art. 17, da Carta da República”.
(3) atropela o rito processual bicameral: o Senado Federal solicitou ao STF suspensão da lei de criação das federações por conta de irregularidades no rito processual por parte Câmara dos Deputados: o processo foi enviado diretamente desta Casa para homologação presidencial, depois de modificado em pontos substantivos, sem voltar para o Senado, de onde partira originalmente, o que configura um desvirtuamento regimental e de competência, com flagrante violação do regime bicameral brasileiro (este ponto foi levantado também pelo PTB na ADI citada);
(4) engessa posições partidárias e arranjos políticos locais: por ser obrigada a permanecer junta por quatro anos, exercendo as atividades parlamentares na Câmara dos Deputados como se um partido fora, a federação terá que administrar as distintas – e não raro antagônicas – posições dos partidos integrantes nas votações relevantes da Casa e, ademais, por ser verticalizada, a federação tem também que lidar com os complexos arranjos políticos locais, nos estados e municípios, e ser obrigada a passar unida pelas eleições de 2022 e 2024. Compromissos convenientes agora podem dificultar possibilidades estratégicas majoritárias amanhã e engessar acordos para as eleições municipais.
Enfim, o mecanismo, que foi concebido como uma burla às coligações, tem que enfrentar os seus demônios, difíceis de exorcização, e deverá ser declarado inconstitucional pelo STF.
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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. mauricio-romao@uol.com.br