A FEDERAÇÃO DE PARTIDOS E O STF

Maurício Costa Romão

A federação de partidos, criada pela Lei 14.208/2021, tem enfrentado vários questionamentos desde o nascedouro, inclusive de inconstitucionalidade, através de ação impetrada pelo partido PTB junto ao STF (ADI 7021).

Na lide, o partido trabalhista solicita que seja declarada inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, dos artigos 1º, 2º e 3º, este por arrastamento, da citada lei, por violação formal e material da Constituição Federal de 1988.

 A ADI em apreço se assenta em quatro violações de dispositivos da Lei Fundamental: (1) afronta ao devido processo legislativo bicameral; (2) afronta à vedação expressa à celebração de coligação nas eleições proporcionais; (3) afronta à vedação expressa à verticalização das coligações; e (4) afronta ao sistema partidário e ao sistema eleitoral proporcional;

O presente texto trata de forma breve do item (2).

A proibição das coligações proporcionais estava em vigor desde 2017 quando, em 2021, a dita lei criou a federação de partidos, suscitando uma situação esdrúxula: uma norma de hierarquia inferior, de forma camuflada, reinstituiu as coligações proporcionais cujo fim havia sido decretado pela Constituição, conforme § 1º, art. 17 da CF, in verbis:

“É assegurada aos partidos políticos autonomia para… adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais (grifo nosso, MCR), sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 97, de 2017)”

A violação frontal ao dispositivo da Carta Magna acima citado é expressa pela agremiação partidária à pagina 5 da interposta ação, ad litteram:

“… a Lei n. 14.208/2021 permitiu aos partidos políticos formarem federação partidária – como uma espécie de coligação – nas eleições majoritárias e proporcionais. Contudo, a celebração de coligação nas eleições proporcionais encontra-se expressamente vedada pelo §1º, art. 17, da CF, com a redação dada pela EC n. 97/2017, desde as eleições municipais de 2020. 9 17.”

 

“Assim, ao permitir, por via transversa, a celebração de coligação nas eleições proporcionais… as normas ora impugnadas violam a vedação expressamente prevista no §1º, art. 17, da Carta da República”.

 

No fundo, a ação petebista tem como base de sustentação o fato inconteste de que a concepção da federação de partidos é pura e simplesmente igual à das coligações proporcionais, e de que a configuração desenhada no novo modelo nada mais é que uma artimanha para driblar a proibição das coligações.

Com efeito, a incorporação no novel mecanismo da abrangência nacional (a união federada seria repetida verticalmente em todos os estados e municípios) e a exigência de que as siglas federadas fiquem unidas por no mínimo quatro anos, são meros adereços. Na essência, federação de partidos e coligações proporcionais são a mesma coisa.

Nesta esteira, no texto em que o presidente da República vetou a federação de partidos (posteriormente o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional) diz-se, como justificativa do veto, que as federações inauguram, ipsis verbis: “um novo formato com características análogas às das coligações partidárias”.

A indistinção entre os dois mecanismos – federação e coligação proporcional – fica evidente no processo de eleição de parlamentares dos respectivos conjuntos, o que, aliás, foi realçado na ação impetrada pelo PTB (página 3), ipsis litteris:

“Como se depreende da leitura dos artigos 1º, 2º e 3º da Lei n. 14.208/2021, os dispositivos impugnados promoveram significativas alterações na legislação partidária e eleitoral com o escopo de autorizar as federações partidárias, além de determinar a aplicação das normas previstas nessas legislações às federações, mormente as regras para obtenção de cadeiras nas eleições proporcionais (grifo nosso, MCR)”.

De fato, os dois modelos elegem seus parlamentares do mesmo jeito: somam-se os votos nominais e de legenda dos partidos federados (coligados), acha-se o quociente partidário da federação (coligação), calcula-se para a federação (coligação) o número de candidatos eleitos diretamente por este quociente e computam-se as sobras eleitorais que podem ensejar vagas adicionais para a federação (coligação). Ao final, tem-se o total de candidatos eleitos pela federação (coligação). Mais igual, impossível!

Surpreendentemente, o Relator da cautelar no STF, ministro Luís Roberto Barroso, não vislumbrou inconstitucionalidade na ação interposta, embora chegue a admitir que federação partidária e coligações proporcionais guardem similaridades, inclusive quanto à nefasta transferência interna de votos entre siglas, ad litteram:

 

“A federação partidária guarda alguma similaridade com as coligações, porque permite que partidos políticos se unam, antes de determinado pleito eleitoral, e sejam tratados como um partido único, para fins de cômputo de votos e de cálculo do quociente partidário (grifo nosso, MCR). Nessa medida, a federação também possibilita uma transferência de votos entre agremiações distintas, tal como ocorria no caso das coligações.” (Relatório, item 16, página 12).

 

Todavia, depois de enfatizar que a lei criadora das federações previa abrangência nacional para os partidos e o mínimo de quatro anos de união, o insigne magistrado entendeu que, por conta disso, a norma impugnada faz distinção entre os dois modelos, e conclui, ipsis litteris:

“Assim, ao que tudo indica, o que se pretendeu com a norma impugnada não foi aprovar um retorno disfarçado das coligações proporcionais. Buscou-se, ao contrário, assegurar a possibilidade de formação de alianças persistentes entre partidos, com efeitos favoráveis sobre o sistema partidário, já que as federações serão orientadas ideologicamente por estatuto e programa comuns – o que não ocorria com as coligações anteriores. Ao mesmo tempo, assegura-se às legendas um período em que poderão experimentar a atuação “como se fosse[m] uma única agremiação partidária” (Lei nº 9.096/1995, art. 11-A, caput), sem a definitividade de uma fusão, o que evita a abrupta alteração na vida do partido e de seus filiados e preserva espaço de atuação para minorias políticas. Portanto, a federação se propõe a ser um instituto de efeitos duradouros, ainda que não permanentes, cuja formação exigirá reflexão e debates que considerem seriamente os seus efeitos”. (Relatório, item 21, página 14).

 

A cautelar foi incluída em reunião do Plenário Virtual do STF para ratificação do teor relatado, ocasião em que o ministro Gilmar Mendes pediu vistas, o que remete a matéria para o Plenário Presencial, ainda sem data para apreciação.

Na reunião do egrégio colegiado é de se esperar que suas excelências não acompanhem o voto do Relator original, evitando assim a volta de conseqüências danosas ao processo eleitoral do país, expurgadas pelo fim das coligações.

Ademais, registre-se, por oportuno, que a lei em comento, na prática, cria um grave desequilíbrio na corrida eleitoral, favorecendo siglas coligadas em detrimento das demais, que não conseguirem formar alianças por motivos diversos. Esta violação ao princípio do tratamento isonômico não foi abordada pelo ministro Barroso no seu Parecer.

Com efeito, (a) a federação tem mais chances de ultrapassar o quociente eleitoral porque sua votação é a do arranjo coligado, enquanto que partidos não federados só podem fazê-lo individualmente, com sua própria musculatura de votos; (b) candidatos de partidos federados têm mais possibilidades de se eleger com menos votos do que candidatos de partidos não federados; (c) partidos federados podem ascender ao Parlamento mesmo não atingindo o quociente eleitoral, o que é vedado aos não federados, a menos que estes tenham votação maior ou igual a 80% do quociente eleitoral e, simultaneamente, consigam estar entre as siglas que obtiveram as maiores médias na distribuição das sobras de voto.

Pode-se argumentar, à guisa de contraponto, que na vigência das coligações dava-se a mesma coisa em relação aos itens (a), (b) e (c), bastando trocar a palavra federação por coligação. É certo, mas com uma diferença fundamental: não havia os requerimentos de verticalidade e de união prolongada.

Quer dizer, a decisão de coligar ou não coligar era da alçada dos partidos, mas sem nenhuma exigência estipulada. A escolha de cada qual se dava em função de suas conveniências, mas movida por total liberdade. Agora, não. Impõem-se restrições. Aqueles partidos que podem superá-las levam ampla vantagem. Os que, por outro lado, têm dificuldades de celebrar federação devido a problemas, por exemplo, de arranjos políticos locais ou por não encontrar agremiações com afinidades programáticas ou ideológicas dispostas a permanecerem unidas nas eleições de 2022 e 2024, levam desvantagem.

A reunião plenária da colegialidade do STF tem a oportunidade de reparar, data venia, o dano que voto proferido pelo ministro Barroso causa às eleições proporcionais, inclusive ao processo de diminuição da hiperfragmentação partidária, grande deformação do sistema eleitoral brasileiro.

O pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes já é em si um atestado de que a matéria carece de aprofundamento, ensejando alento quanto à acolhida pelo Pleno da Suprema Corte da ADI interposta.

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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. mauricio-romao@uol.com.br

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